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|Crítica Mostra 2024| 'Grand Tour' (2024) - Dir. Miguel Gomes

|Crítica Mostra 2024| 'Grand Tour' (2024) - Dir. Miguel Gomes

Crítica por Victor Russo.

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'Grand Tour' / MUBI

 

Título Original: Grand Tour (Portugal)
Ano: 2024
Diretor: Miguel Gomes
Elenco: Gonçalo Waddington, Crista Alfaiate, Cláudio da Silva, Lang Khê Tran e Jorge Andrade.
Duração: 129 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Miguel Gomes cria relação ambígua com o clássico, transformando seu relato de viagens em uma ironia ao exotismo e à dominância anglófona no cinema, sem rejeitar a imagem e os símbolos hollywoodianos do período

Diretor acostumado a romper com a linearidade das narrativas e criar metalinguagens, Miguel Gomes tem em Grand Tour um filme curioso em como lida com o cinema a partir do cinema. A começar por ser um filme deslocado no tempo, que narra uma história ficcional na segunda década do século XIX, sem algum discurso que se conecte exatamente com o presente, para além de imagens contemporâneas daquele local, que trazem uma realidade ao que o cinema hollywoodiano sempre tratou com caricatura, o exotismo dominante de um período que via a África e a Ásia (um pouco da América do Sul também) como lugares deslumbrantes, mas que serviam apenas como uma visão estereotipada daqueles paraísos naturais, apropriados pelos épicos americanos como palco para os mesmos personagens de sempre adentrarem esses locais vistos como “primitivos”. Aqui, Gomes já encontra sua primeira ambiguidade, ao tratar todas essas cidades asiáticas, de países como Birmânia (atual Myanmar), Singapura, Japão, China, entre outros, de maneira pouco distinta, quando vista pelos olhos de Edward (Gonçalo Waddington) e Molly (Crista Alfaiate), do que o cinema clássico estadunidense sempre fez, com a distinção de que não transforma os nativos dessas colônias naquele período em caricaturas, mas também pouco os complexifica. O fascínio, sobretudo de Molly, está em cada novo lugar em interação, que vê com paixão, mas também com riso, marcado pelas gargalhadas exageradas da personagem de Alfaite. É como se ele risse de Molly e dessa suposta superioridade que os ocidentais sempre sentiram, resultado apenas da limitação deles mesmos, mas não diminuísse a personagem no processo.

Então, o que a risada de Molly revela também é a segunda e mais marcante ambiguidade de Gomes, em seu amor e ironia para com o cinema clássico. Ela é uma versão de Claudette Colbert em Aconteceu Naquela Noite, ou de tantas atrizes em comédias românticas do cinema do período, do screwball às que buscavam esse certo exotismo. Ela, por sinal, modifica bastante a dinâmica do longa após ser apresentada como uma personagem de carne e osso e não apenas como aquela perseguidora desconhecida a nós da primeira parte que vemos pelos olhos do seu marido. Se Edward adota um tom mais sério e se conecta brevemente com aqueles que passam por seu caminho, como era bastante típico dos personagens masculinos mais bobos das comédias malucas, Molly é a figura mais expansiva, em um gênero histórico que constantemente tinha nas mulheres a graça para mover as narrativas. Só que esse trato não é apenas nostalgia por parte de Gomes, que tem sim uma vontade de reconstruir, pelo trato do preto e branco, por as já mencionadas características das personagens e a relação com aqueles países que estavam sob domínio inglês no período. Ao mesmo tempo, a sátira que começa mais sutil vai se ampliando, vai ficando clara essa dicotomia em como Gomes enxerga referências que o moldam, mas são problemáticas quando postas na lupa contemporânea. Ao se revelar enquanto filme ao final, o diretor explicita ainda mais esse seu trato sobre o que veio antes, a partir das ressignificações daquelas imagens e símbolos intrínsecos ao cinema.

Algo semelhante, mas até mais explícito vai estar justamente na língua. Se se apropria e se diverte com o filme de relato de viagens, com os personagens da comédia maluca e no uso ou na ruptura da imagem clássica a partir do preto e branco, ter personagens ingleses, passando por países que eram colônias britânicas, que se tornaram independentes no século XIX, só que com esses personagens se comunicando em português é uma brincadeira deliciosa ao reverter a lógica da dominância anglófona típica do cinema hollywoodiano, que até hoje coloca personagens de todos os cantos do mundo para falarem inglês, já que manter atores locais com seus idiomas não seria comercialmente aceito no país que acredita ser o centro do mundo. Ao reverter essa dinâmica, Gomes concretiza sua obra de amor e ironia, que soa deslocada no tempo, mas extremamente apaixonada em reconhecer o cinema que veio antes como uma influência devidamente mutável pelo agora. Em tempos de nostalgia pela nostalgia, sem qualquer criatividade ou pretensão que não seja vender produto pela memória afetiva, ver esse ótimo diretor português tornando toda essa relação mais complexa e propondo algo em suas brincadeiras é bastante divertido.

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