|Crítica| 'Tesouro' (2024) - Dir. Julia von Heinz
Crítica por Raissa Ferreira.
'Tesouro' / California Filmes
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Julia von Heinz usa humor de péssimo gosto em tentativa de equilibrar um drama pobremente trabalhado, em filme que reduz tudo que pretende ilustrar
Nas primeiras cenas em que vemos Stephen Fry chegando ao aeroporto de Varsóvia com Lena Dunham, extremamente impaciente com o carisma contagiante do personagem que parece não ter pressa nenhuma em desestruturar os planos da protagonista, quem assiste a Tesouro pode ter a certeza de que encontrou uma comédia que eventualmente pincelará um drama familiar. Aos poucos, livros sobre a história da segunda guerra mundial, campos de concentração e nazismo trarão contornos obscuros a Ruth, uma jornalista de Nova York que se torna obcecada pela ideia de conhecer a história de seus pais, suas origens e, o ponto principal, seus traumas com o holocausto. A escolha de Julia von Heinz de usar o humor de forma bastante questionável vem da atmosfera da obra que inspirou o filme, o livro baseado em uma história real de Lily Brett, e é impossível dizer como isso se dá no romance sem o ler, porém a maneira como a diretora trabalha os gêneros na adaptação muitas vezes ultrapassa a linha do mau gosto. Há uma necessidade de tornar tudo muito decadente, de Ruth, sua autoestima, corpo e relação com a comida, a uma fotografia que remove um tanto da saturação para transparecer o frio e a tristeza dos espaços. As cidades que pai e filha visitam na Polônia são o retrato da pobreza, de pessoas desesperadas por dinheiro, quase humilhadas pela forma que o filme as retrata ao redor das notas de dólares dadas pelos personagens que chegam dos EUA, mães buscando alimentos para os filhos, casas em péssimo estado e por aí vai. A diretora parece querer exibir um lugar que não somente ainda está destruído após a guerra, demarcando sua trama nos anos 90, como também é um retrato de rancor por ele, espelhando em espaços a dor das pessoas que ali morreram, perderam tudo ou sobreviveram, mas nunca puderam retornar. É latente esse sentimento que as imagens passam, não de um resgate emocional ao vínculo original familiar, mas de ressentimento com todas as pessoas e lugares que fizeram parte de uma tragédia imensa.
Há especialmente em Ruth um tratamento muito complicado por parte do longa. Tesouro trabalha sua protagonista como uma mulher presa a sentimentos terríveis que a tornam obcecada em um nível desconfortável com o holocausto. Em dado momento, Edek questiona a filha sobre esse apego a uma tragédia e é provavelmente o que a maioria das pessoas que assistem ao longa devem estar pensando. A protagonista caminha entre cenas que tentam inserir o humor como quebra do drama, mas tornam tudo ainda mais lamentável, como quando ela encontra uma mulher pobre e mais uma vez entrega notas de dólares como solução, recebendo diversos objetos pessoais em retorno. O dinheiro dos EUA vem como um símbolo de superioridade a essas pessoas praticamente abandonadas, embora Ruth sempre reforce que também não é uma pessoa rica, mas com condições de dar mais de $500 em itens deixados por seus familiares. Ela insiste, cena após cena, em resgatar algo que parece extremamente sem sentido, visto que nem ao menos se deu ao trabalho em 36 anos de aprender o idioma dos pais, mas vê grande importância em ter suas louças, ver os campos em que os avós foram assassinados e encontrar os documentos que podem remover os invasores que vivem nas casas de Edek há mais de 50 anos. Se tem algo que Tesouro realmente destaca é essa necessidade de posse bastante americana, do que é propriedade de direito, e não a conexão emocional, a herança histórica que serve apenas de máscara dramática para legitimar as intenções e sentimentos dessa mulher.
É triste porque é um longa que quer explorar uma tragédia imensa e partilhada por muitos, por esse viés do conhecimento pessoal a partir da jornada familiar, mas o faz das piores formas possíveis. Além de colocar Ruth em posições complicadas, por vezes a mulher decadente sem nenhuma autoestima e com compulsões alimentares, das quais o filme quase faz questão de rir, e, na maioria das vezes, uma obcecada pela desgraça que até mesmo tatua em sua pele números como os dos prisioneiros dos campos de extermínio - algo explorado em duas cenas que até doem de tão absurdas -, a obra também faz de todos os personagens estereótipos rasos que imprimem apenas ideias simplistas de relações muito mais complexas. A fuga do pai, por exemplo, é sempre buscar no humor do filme uma chance de não encarar a dolorosa realidade de suas lembranças, as quais a filha sem querer o obriga a enfrentar com essa viagem. No entanto, qualquer trabalho que lide com essas emoções de forma mais completa é negligenciado e tenta usar o homem como esse alívio constrangedor até que, quando ele finalmente se emociona e permite que os sentimentos sejam vistos em tela, é muito pobre e vazio.
Em suma, é como se os objetivos de Julia von Heinz com seu filme estivessem todos cruzados e desconectados com a história. No lugar de um resgate emotivo, vemos obsessões materiais sem sentido, no lugar de um vínculo pai e filha, vemos uma pessoa diminuída pela encenação e outra que serve como distração de um trabalho defeituoso dessa relação, no lugar do impacto das emoções que deveriam vir naturalmente, vemos um apelo barato de uma história amplamente conhecida que até mesmo se vale de espaços reais para implorar um sentimentalismo que não tem a mesma empatia pelas pessoas carentes, retratadas como parasitas que dançam ao redor de dólares.