|Crítica Mostra 2024| 'Enterre Seus Mortos' (2024) - Dir. Marco Dutra
Crítica por Raissa Ferreira.
'Enterre Sus Mortos' / Globoplay
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Com universo de mistério interessante apresentado, Marco Dutra mergulha em sua megalomania prejudicando o desenvolvimento de seu filme
De cara, é interessantíssimo como Marco Dutra pega a história escrita por Ana Paula Maia e imagina um universo de fundo totalmente novo para ela. Transportando a atmosfera de faroeste do livro para o filme, mas apostando em outras muitas vertentes para o mundo de Edgar Wilson (Selton Mello), Enterre Seus Mortos enxerga seus personagens alheios a qualquer humanidade enquanto o apocalipse acontece, seitas religiosas dominam comunidades, pessoas não comem mais carne, pois todos os animais foram infectados, crianças são ameaças e pedras enormes chovem do céu. Todo esse mistério cósmico ocorre sem muito interesse de Edgar Wilson e Tomás (Danilo Grangheia), que bebem em bares com os olhos vazios, recolhem corpos de animais nas estradas pouco se importando com os humanos que padecem ao seu lado e esperam as chuvas de pedregulhos encerrarem sem muita emoção. O mistério é muito amigo de Dutra em boa parte do longa, já que nada dessa loucura vê obrigação em se compreender ou mesmo de se relacionar diretamente com os personagens principais. Caetano Gotardo, que assina o roteiro ao lado do diretor, faz um personagem que abre a ideia da obra e a apresenta a quem quiser comprar. Permanece largado em Abalurdes após um acidente, e ainda sangrando toma uma bebida no bar, porque, nesse mundo, ninguém se importa com as pessoas. O problema está em como esse desenvolvimento vai se tornando cada vez mais megalomaníaco e, embora pareça implorar para não ser compreendido, também tem alguma intenção de se resolver em si mesmo, e, por abraçar tantas coisas, fica difícil. A jornada de Edgar Wilson se complica, quer ser grandiosa e adentrar uma loucura que ao mesmo tempo em que é corajosa, pois são poucos autores que hoje se arriscam tanto, acaba soando mais aleatória e, por isso, os elementos vão se perdendo, do que algo que foi intencionalmente pensado para ser caótico e inexplicável.
O faroeste em capítulos conta de forma regressiva como que realmente apontando para o fim do mundo em seu desfecho. Tudo vai se tornando mais denso e descomedido conforme os números diminuem. Ao longo dessa jornada, inúmeras referências podem ser sentidas, assim como muitos gêneros se empilham. O mundo ao qual a pessoa espectadora é apresentada tem algo de Stephen King e Lovecraft, em momentos diferentes, o horror cósmico em certo ponto também é de possessão demoníaca, há uma sátira embolada em tudo com uma Betty Faria bem fora de tom, a intenção de viver um amor rígido em tempos de apocalipse, ficção científica, monstros, foguetes no céu, presságios religiosos, enfim, são muitos os elementos e caminhos e, enquanto Edgar Wilson parece navegar tudo isso sem querer se envolver, apenas fazendo seu trabalho e seguindo sem muito observar o que passa ao fundo, o mistério torna esse universo muito mais interessante e complexo. Há, por exemplo, algo muito cômico em como o protagonista tem uma ligação com Titanic e Nete (Marjorie Estiano) usa a música do filme para o acalmar em seus pesadelos, no entanto, Enterre Seus Mortos vê necessidade de dar alguma explicação maior a esse ponto, inserindo no arco em que Edgar está possuído por um assassino o contexto da obra sobre o grande barco afundando e sua ligação com o homem. Em certa medida, parece que é isso que o texto de Dutra e Gotardo quer fazer na segunda metade inteira, amarrar pontas completamente absurdas em cenários ainda mais complicados.
A narrativa vai se inchando em tantas alternativas que soam aleatórias e o desfecho caminha em algo próximo do que Panos Cosmatos faria, mas, novamente, são muitos os gêneros e referências que encontramos. Dutra abraça tudo que sua mente pode imaginar em uma loucura que prejudica sua obra. Em geral, nenhum filme pede tanta compreensão, não é preciso entender cada detalhe e ponto, e se relacionar com as obras e suas imagens se torna muito mais relevante. Enterre Seus Mortos empilha imagens com as quais espera provocar essas relações mais sensoriais e muito menos racionais, no entanto, essa tarefa se torna complicada a quem assiste e é bombardeado até se perder no fluxo de ideias. O que acontece também é a dificuldade em acertar o tom em todas as vertentes que pretende. Selton Mello quando está possuído evoca uma voz que é idêntica a de Chicó, a comédia escrachada que tenta com a tia de Nete ou outros elementos da seita, mais erra do que acerta. As propostas estão todas ali e soam muito frescas e criativas, mas tentar adentrar cada uma delas com respostas é um passo ousado que não se prova efetivo. Assim como as pedras enormes caem do céu enquanto Edgar Wilson parece alheio a elas é mais ou menos o que acontece em Enterre Seus Mortos com a pessoa que assiste, mesmo que comece adentrando bem o universo, depois é bombardeada com elementos enormes e quase todos caem longe, sem o efeito esperado.