|Crítica Mostra 2024| 'Dahomey' (2024) - Dir. Mati Diop
Critica por Raissa Ferreira.
'Dahomey' / MUBI
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Dando vida e identidade a objetos roubados por colonizadores, Mati Diop registra o ponto de partida dos debates sem a pretensão de responder nenhuma questão levantada
Curiosamente, esse é o terceiro filme a rodar festivais no Brasil neste ano que trata de um mesmo tema em comum, o sequestro de pedaços de uma identidade cultural por colonizadores. No entanto, Mati Diop é de longe quem melhor compreendeu como abordar essa questão, dentro do formato documental, sem dar margem alguma aos europeus para se redimirem ou terem possibilidade de redenção. Dahomey inicia seu registro pelo ponto de vista de um objeto, marcado como número 26, o último na ordem de uma leva ínfima de outras milhares de peças ainda em poder dos franceses. Não apenas colocando a pessoa espectadora na escuridão dessas caixas e incertezas de pertencimento, mas também dando vida e identidade a esse objeto, uma voz que evoca sua presença ancestral e um texto que projeta sua importância nesse processo. A diretora cruza uma linha mística e fantasiosa para que não sejam as pessoas as protagonistas, mas os debates, levantados tanto pelos pensamentos fabricados da peça que narra o filme, quanto por toda a população de Benim que é confrontada pelo retorno dessa leva de obras roubadas. Diop não pretende então atestar o que esse resgate significa, mas operar como historiadora, registrando esse momento e como ele impacta a sociedade repleta de cicatrizes coloniais.
De estrutura bastante simples, Dahomey observa silenciosamente e passivamente o que acontece, buscando construir sua narrativa a partir das falas que se dão espontaneamente. Enquanto as peças roubadas retornam, há festas nas ruas, convidados de honra aguardando nos museus e trabalhadores da imprensa captando tudo. Mas o que significa esse evento? Qual a importância política, social ou religiosa que se dá pela presença dessas peças novamente em seu território de origem? A cultura dessas pessoas depende de tudo que foi sequestrado ou se faz além disso? Qual é a verdadeira identidade de um povo que já foi tão afetado por colonizadores? São algumas das muitas perguntas que a câmera paciente de Diop registra enquanto as próprias pessoas tentam encontrar respostas para este acontecimento. Coletivamente, o povo se une para debater inúmeros pontos de vista, da problemática de obras de arte em museus, como limitação do acesso, ao que essas peças realmente representam, se são arte, cultura ou crença. Não importa, então, ouvir o que os políticos têm a dizer, muito menos os franceses, Dahomey se concentra exatamente nesse processo pensante que ferve entre as pessoas às quais esses objetos deveriam pertencer, como parte de uma nação.
Destacando as cúpulas de vidro e a escuridão do museu que tem hora marcada para exibir as 26 obras, muito bem catalogadas e identificadas por profissionais em sua chegada, o documentário dá contorno a essa distância que existe entre esses pedaços de identidade cultural e um povo que não os conhece de fato. Para as pessoas, a cultura se faz daquilo que é imaterial, ressaltado nas imagens do filme, suas roupas, danças, comidas e formas de ser mais rotineiras, mas há esse elo rompido entre as línguas substituídas pelo francês e as crenças esmagadas em algum lugar junto com a remoção dessas figuras pelos europeus, tornando a história dessas pessoas, fragmentos contados como contos infantis, ficção que não se conecta com suas realidades. Ainda que Diop trace essas questões visualmente e a partir da montagem de falas que observa, seu registro ainda é puramente um impulso por debater e refletir, dar muitas perguntas para que seu filme seja, juntamente com esse momento de resgate histórico, o ponto de partida de alguma construção crítica.