|Crítica Mostra 2024| 'Familiar Touch' (2024) - Dir. Sarah Friedland
Crítica por Raissa Ferreira.
'Familiar Touch' / Imovision
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Delicado em como faz sua protagonista alguém tão especial, longa de estreia de Sarah Friedland desfoca o fundo para mostrar a beleza e a tristeza de envelhecer com memórias rompidas
Há um fascínio em como Sarah Friedland mostra sua protagonista em seu cotidiano em casa logo nas primeiras cenas. O fazer a comida, com as mãos, pegando ingredientes plantados, cortando na tábua, posicionando no prato, tudo cuidadosamente feito em silêncio em uma casa solar e colorida em que a cozinha é o centro de tudo. Ruth (Kathleen Chalfant) não demonstra nenhum sinal diferente, a não ser por uma torrada colocada no escorredor de louças para esfriar, algo peculiar, mas que nada diz sobre seu estado mental. É só quando um homem mais jovem (H. Jon Benjamin) adentra o lar que a dinâmica mostra suas estranhezas e revela que algo não está certo. Para quem assiste, o mundo é visto ao lado dessa mulher idosa, logo, suas confusões são transmitidas no mesmo grau, porém, há uma vantagem na percepção. Se Ruth demora, ou nem compreende que o homem é na verdade seu filho, a pessoa espectadora logo liga os pontos pelo desconforto de Steve. A mala pronta para sair da casa a qual a cozinheira nunca mais retornará é facilmente entendida como um sinal de que ela será levada para viver em alguma organização, mas Ruth é incapaz de captar esses símbolos. O que talvez o ambiente da casa não fosse capaz de passar com tanta precisão, é transmitido com muita clareza no momento em que a senhora chega a sua nova moradia. Ruth é de uma classe social muito privilegiada e sua espécie de asilo mais parece um resort de luxo, com tudo a seu dispor, menos uma memória funcional. Familiar Touch dedica-se a acompanhar essa nova etapa da vida, do reconhecer a si mesmo na terceira idade, com uma mente pouco confiável e longe do acolhimento familiar. O interessante, no entanto, é como Friedland torna sua protagonista tão especial nessa observação que todo o restante, personagens e contextos, parecem borrados ao fundo.
Em dado momento é possível pensar que Steve nunca mais aparecerá e o cotidiano de Ruth se torna completamente outro, seus novos vínculos são a enfermeira Vanessa (Carolyn Michelle Smith) e o médico (Andy McQueen), os quais ela chama de amigos e muitas vezes confunde seus papéis em sua vida. Os outros residentes do local existem quase como figurantes, um ou outro tem algum contato com Ruth, mas nenhum aprofundamento é dado nessas relações ou personalidades. O mundo de Familiar Touch se fecha na protagonista, se aproxima dela e caminha ao seu lado para reconstruir sua vida e personalidade de acordo com como sua memória elabora as coisas. Sabe-se que ela foi casada e não queria ter filhos por como ela diz essas coisas em momentos aleatórios, percebe-se sua carreira de cozinheira por como ela invade a cozinha do local em que vive e os funcionários acabam permitindo sua atividade, assim ela divide um pouco mais de quem é, e por aí vai. Os fragmentos de Ruth se montam a partir dela mesma, em como ela consegue contar para quem assiste sobre si. Nesse processo, Friedland é sensível e detalhista como os gestos e ações da mulher, observando desde como ela se relaciona com outros com muito bom humor, até sua forma de posicionar ingredientes nos pratos.
O ponto de vista abraça a confusão sem dar respostas mais adiantadas do que Ruth consegue ter. Como diz Vanessa em uma cena, existe a verdade dela e a dos outros, por essa ruptura na percepção que sua mente tem dificuldades, assim, o longa não quer explicar demais nem expor questões, permite que o fluxo siga uma compreensão natural a partir do que Ruth experiencia em sua jornada de se redescobrir. Isso é tão belo, pela forma como enxerga nessa mulher alguém tão especial, engraçada, bem humorada, habilidosa na cozinha e afins, quanto triste e melancólico, por todas as vezes em que ela consegue compreender sua condição e sua solidão, ou por quando quem assiste antecipa esse sentimento sem que ela mesma perceba. Há nesse exercício uma sutileza de Friedland em pensar como as pessoas continuam a ser elas mesmas, em suas essências, mesmo que muito da mente e da memória se perca, e como existe um rompimento nas famílias que não são mais reconhecidas, tornando-se ausentes do convívio. Muito disso mora na transição final, entre o carinho de Ruth e seu filho, brutalmente cortada para a solidão da mulher e uma nova enfermeira que não é mais sua amiga de antes.