|Crítica Mostra 2024| 'The Devil's Bath' (2024) - Dir. Severin Fiala e Veronika Franz
Crítica por Raissa Ferreira.
'The Devil's Bath' / Shudder
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Lidando com o horror em sua forma mais humana e obtendo um poder obscuro a partir disso, Severin Fiala e Veronika Franz retratam a opressão feminina histórica e atemporal
Depois de lidar com tramas que envolvem tanto o isolamento quanto o psicológico humano, a dupla Severin Fiala e Veronika Franz retorna na direção com algo similar, mas que de alguma forma ainda fica no meio do caminho entre seus trabalhos mais marcantes. A estética do horror folk europeu já começa a soar batida dentro do gênero, sem propor algo diferente visualmente, mas é interessante como The Devil’s Bath alimenta uma ideia sobrenatural sem de fato cruzar essa linha, lidando com o terror a partir da forma humana, de uma angústia atemporal que atravessa as vivências femininas, tendo como monstros uma influência imaterial da religião, colocada em ações cotidianas, e a sina da mulher em seu papel na sociedade. A história de Agnes (Anja Plaschg) começa então justamente por um rito, uma festa associada a seu casamento que dita seu destino enquanto esposa e futura mãe, sempre pontuando, mesmo que ludicamente, o que deve cumprir nesses papeis. A primeira sequência não é jogada ao acaso e, ao contrário do que os muitos textos finais do longa deixam parecer, se justifica dentro da própria narrativa pela jornada de Agnes, tornando-se claro o que aconteceu com a mulher e seus motivos. Na verdade, a cena em que vemos um bebê chorar muito e em seguida ser lançado por uma mulher visivelmente cansada para a morte, já diz o suficiente. Trata-se de um roteiro muito bem pautado por pesquisas acerca das vivências e costumes do século 18 em países de língua alemã, mas retratado de forma a destacar sua atemporalidade no que diz respeito às opressões femininas. Assim como A Bruxa fez, a história é usada como estrutura, imaginando, para preencher as lacunas, como as mentes humanas levadas a extremos se comportavam.
The Devil’s Bath reforça então os rituais e crenças a cada ação e consequência das pessoas que habitam os vilarejos cercados de florestas. A mulher que comete o crime e prontamente se entrega, tem corpo decapitado exposto e deixado para que retirem partes como amuletos. O homem que tira a própria vida e é largado, condenado pela igreja que deixa seu corpo decomposto e sem perdão, algo que é cedido até mesmo a uma assassina. O casamento que requer filhos e funções específicas, os altares, objetos de superstição e trabalhos, tudo no cotidiano retratado no filme circula uma rotina que explica seus preceitos e que contém diversas crenças. É assim que Agnes é trabalhada dentro de uma lógica que a sufoca lentamente por obrigações e pressões pouco distantes do que já conhecemos e o horror marca sua existência por essas influências humanas. É esperado da mulher que acaba de se casar que cumpra suas funções, a maneira de cozinhar, de cuidar da casa e dos animais, de atuar no serviço da família e, é claro, gerar filhos. A primeira frustração é, portanto, a incapacidade de usar seu corpo da maneira que é esperado, ignorando a relação sexual como forma de afeto e prazer, e a compreendendo de maneira fria como um simples meio de fecundação, Agnes começa a adoecer por não conseguir que o marido faça sua parte nesse trabalho. A partir disso, a sogra se faz presente dentro da casa do novo casal, criticando todas as atitudes da nora, no trabalho e nas atividades domésticas, sempre pronta para julgar Agnes como incapaz no seu papel de mulher.
A religião anda lado a lado com essa pressão social exercida principalmente pela sogra. As orações e superstições de Agnes se dão como alternativa para resolver aquilo que não lhe falta enquanto esposa, ainda que seja impossível engravidar apenas na base da reza. Mas, mais do que isso, mesmo que a dupla na direção aplique muita distância no tratamento com essa igreja, são suas regras que deixam cada vez mais óbvia a motivação da mulher que na introdução matou um bebê, talvez seu próprio filho, e se denunciou. Se torna redundante e extremamente didática a explicação final em texto, mas reforça o que The Devil’s Bath quer fazer ao longo de todo seu trabalho, explorar o horror em sua forma mais humana, encontrado nas atitudes e opressões cotidianas que podem ser vistas no século 18, mas profundamente compreendidas até hoje. Se a qualquer momento parece que o diabo vai aparecer ou qualquer outra entidade maligna surgirá no meio da floresta, essa sensação vai se dissipando até que se transforme em uma repulsa completa pela figura do marido e da sogra, pessoas de carne e osso, representando todo um sistema de crenças e regras que definham as mentes femininas, as obrigando a encontrarem alternativas para ao menos morrerem em paz.