|Crítica Mostra 2024| 'Anora' (2024) - Dir. Sean Baker
Crítica por Victor Russo.
'Anora' / Universal Pictures Brasil
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Como uma personagem típica de Sean Baker, Anora se revela muito mais enquanto reação de consequências inesperadas do que como estudo de personagem e do retrato da mulher no cinema
Quando pensamos, em 2024, em um filme que tem como protagonista uma profissional do sexo, a expectativa imediata é um debate sobre a profissão e, principalmente, como o cinema sempre olhou e ainda olha para as mulheres. Foram quase 70 anos dessa arte até algumas teóricas feministas ganharem espaço no debate e discutirem sobre como os filmes sempre foram feitos para o olhar de alguém, como já se teorizava desde muitas décadas antes, mas esse olhar era sempre masculino, sendo as personagens femininas, como diria Laura Mulvey “para serem olhadas”. O crescimento dessas vozes e de mulheres ganhando mais espaço na direção fez com que esse retrato da mulher enquanto objeto voyeurístico masculino não sumisse, longe disso, mas, aos poucos, novas visões e discussões a respeito do papel da câmera para a construção de imaginário social foram sendo implementadas. Só que, se por muito tempo se lutou por uma pluralidade de representações, reforçando novas formas de identificação e liberdade sexual inclusive (algo muito presente nos artigos de Linda Williams), a era das redes sociais e o consequente isolamento social fez com que as pessoas se fechassem em bolhas e estimulassem discursos simplificados para agradar a esses grupos. Entre as muitas consequências disso, superficializou-se as possibilidades de representações no cinema, o sexo voltou a ser um tabu até mesmo para os ditos progressistas, que antes lutavam pela contracultura, amor livre etc. Ao invés de se questionar representações ultrapassadas ou fetichistas, sobretudo do corpo feminino, o discurso dominante foi o de simplesmente não representar, a negação do sexo e do prazer enquanto parte da vida e das pessoas como figuras complexas. Qualquer corpo nu virou, em um discurso bem frágil, desnecessário ou “problemático”, ao passo que, todo filme que aborda tais questões “precisava” tratá-las da forma “correta” e “educativa”. O cinema, em grande medida por culpa dos próprios críticos, mas não só deles, foi perdendo as sensações e virou um palco para temas. Os cineastas cada vez mais sentiram o peso da obrigação de seguir essas doutrinas que se impuseram. É nesse cenário que Sean Baker faz de Anora um grande filme corajoso por mais de duas horas e cede à pressão nos minutos finais.
Em certa medida, Anora é um filme bem característico de Baker em seu olhar para essas pessoas reais, um cinema que tem esse caráter humanista sem nunca ficar preso em estereótipos ou personagens vazios apenas com o objetivo de provar um ponto. Longe disso, são sempre personagens reais, tentando sobreviver da forma que conseguem, tomando atitudes questionáveis como todos nós, falando palavrões, reclamando das merdas que acontecem com eles, mas seguindo em frente. Sempre nesse lugar mais independente, em um cinema com liberdades, o diretor teve nessas construções dos seres humanos pelo espaço uma força do real por um olhar cinematográfico. Em seu filme vencedor da Palma de Ouro não vai ser diferente, continua se usando das lentes grande angulares em que ampliam a profundidade desses lugares, os cortes secos que demonstram tédio ou a passagem de tempo quase imperceptível entre uma loucura e outra, refaz até alguns de seus planos, como o grande plano geral dos personagens pequeninos andando rápida e horizontalmente. Só que, se os seus filmes sempre trabalharam com essas lógica das situações reais, não dependentes necessariamente de causas e consequências diretas, ou inserindo entre elas uma série de acasos da vida, Anora até encontra alguns resquícios de Tangerine, mas se aproxima ainda mais dos longas dos Irmãos Safdie ou de Depois de Horas, de Martin Scorsese.
Assim, o longa vai se dividir praticamente em três partes, a apresentação de Anora (Mikey Madison) como uma profissional do sexo, sem medo de julgamentos, entendendo inclusive como natural a forma como a personagem usa seu corpo, e a relação repentina com o filho mimado de um milionário russo (Mark Eydelshteyn), inclusive sendo uma maneira da personagem ter finalmente uma vida mais tranquila. Em nenhum momento Baker problematiza a situação e muito menos julga a personagem. Pelo contrário, Anora será o filme todo o fator de aproximação do público, vamos rir com ela, nunca dela, vamos reagir da forma com ela reage. A transposição dos sentimentos da personagem para o espectador é o principal caminho para a narrativa de incerteza funcionar, já que somos jogados não a observar ou julgar, mas a viver aquela sucessão caótica na pele da protagonista. A primeira virada, que faz o marido, Ivan, fugir, joga o longa para um segundo momento e transforma a narrativa em uma dinâmica de busca, de Anora tendo que conviver com os capangas do pai do esposo para poder sair daquela roubada que nem sabia que era possível se meter. Mais uma vez, os homens são vistos a partir da perspectiva dela, e as piadas habilmente construídas pela incredulidade da protagonista em presenciar a forma estúpida como eles agem. É na terceira parte, que há uma divisão entre a presença da família do rapaz e a finalização de Anora, sobretudo nesse momento final, que o filme modifica não só seu gênero, mas a perspectiva do olhar para com a personagem.
O que presenciamos por mais de duas horas é uma saída bastante corajosa do cineasta, a rejeição ao estudo de personagem mais tradicional e ao “filme de tema”. Anora é construída por suas atitudes e o que conhecemos dela é a sua realidade, mas, principalmente, como se revela frente a cada novo desafio. É uma lógica de sensações, de saídas repentinas e, sobretudo, do cinema a partir de uma aceitação do gênero como verdadeira arte também. Não há uma necessidade de dizer algo relevante, mas de nos fazer doer a barriga de tanto rir e de se desesperar a cada situação que dá errado. É um cinema de mise en scene, de quebra de expectativa a cada corte, reação ou diálogo, a cada explosão em palavrões da protagonista que só quer sair daquela roubada que foi imposta a ela. Então, enquanto Scorsese resolvia Depois de Horas com seu protagonista masculino chegando sujo, atordoado e cansado daquela noite maluca caindo convenientemente na frente de seu trabalho, na hora que as portas abriam, para começar mais um dia estressante, tirando uma ironia daí, Baker não permite a Anora o mesmo resultado, a personagem feminina não pode simplesmente dar um suspiro de alívio e cansaço e retomar sua vida, o que seria condizente com tudo o que foi apresentado e todas as ações por ela tomada durante mais de duas horas. O cineasta entende no peso dela de ser uma mulher profissional do sexo a necessidade de torná-la uma figura complexa que deve reagir da única forma que lhe foi ensinada frente a sua realidade. As luzes mudam, o filme perde a cor e o final ganha contornos dolorosos. A saída de inserir uma discussão temática ao final pode ser um alívio para alguns, quase como uma obrigação. Mas, no fundo, ao fazer isso, Baker está diminuindo o seu conto de fadas às avessas enquanto o cinema proposto, impedindo a princesa contemporânea de ser apenas essa condutora do acaso e terminar como uma pessoa real, sem uma imposição narrativa para provar um ponto. Felizmente, essa traição em relação ao próprio filme pesa pouco frente ao restante.