|Crítica| 'Saudade Fez Morada Aqui Dentro' (2024) - Dir. Haroldo Borges
Crítica por Victor Russo.
'Saudade Fez Morada Aqui Dentro' / Cajuína Audiovisual
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Haroldo Borges recusa uma abordagem mais óbvia sobre o assunto e permite à câmera observar livremente com uma energia doce e raivosa
Desde os primeiros segundos Saudade Fez Morada Aqui Dentro tem uma câmera que faz o espectador mais desavisado acreditar que se trata de um documentário. O afeto, a brincadeira e a leveza entre os irmãos Bruno (Bruno Jefferson) e Ronaldy (Ronaldy Gomes) têm a naturalidade de uma direção que sabe trabalhar com não atores, mas rapidamente é substituída por uma cena um tanto mais didática, revelando o peso do anúncio ao que virá a seguir: Bruno está perdendo sua visão e não há cura. Tal ruptura representa os caminhos que Haroldo Borges trabalhará durante os 106 minutos de projeção, a empatia e a readaptação, por vezes, um tanto difícil e repleta de sofrimento, aos poucos, combinando-se em um só entendimento e sentimento da vida. Mais uma vez retornamos, então, a como essa câmera observa. Ou melhor, o que ela escolhe ver e como mostra.
Nesse sentido, pensemos primeiro de tudo na relevância da câmera subjetiva para o cinema, esse elemento fundamental e presente já nas primeiras décadas dessa arte, importantíssima para o desenvolvimento dessa gramática cinematográfica. Se não paramos para pensar o quanto vemos o mundo pelo olhar de um personagem é justamente porque isso é tão natural para nós que só percebemos a câmera subjetiva quando ela não se faz presente. Ao ter como protagonista um jovem nessa transição entre a infância, a qual guardará todas as suas memórias da materialização visual do mundo, e a adolescência, perdendo a visão nesse processo contínuo, Haroldo Borges tem como ponto principal da decupagem como escolherá nos mostrar aquele mundo, por uma visão externa ou pela perspectiva dos personagens. Pode parecer uma escolha simples, mas, nesse caso, diz tudo sobre como a empatia pelos personagens, sobretudo por Bruno, se dará. Grande parte dos cineastas iriam por um caminho um tanto mais genérico, o de filmar, por alguns momentos, desde o início a subjetividade de Bruno, retratando sua visão ficando cada vez mais embaçada até sumir por completo. Tal abordagem representaria mais do que uma aproximação terna pelo personagem, seria uma forma um tanto baixa de se capturar o espectador pela dor, por um choque que se justificaria como aproximação do personagem, mas, no fundo, seria apenas a diminuição do protagonista enquanto personagem para ressaltar a sua deficiência como algo horrível e desesperador.
Borges não cai nessa armadilha, recusa-se a filmar o ponto de vista de Bruno, com exceção dos poucos segundos que ele acorda pela primeira vez sem enxergar mais. Ao rejeitar a câmera subjetiva, o cineasta cria uma observação externa, o que faz muito sentido com essa abordagem mais documental de câmera na mão, jump cuts constantes e diversas vezes uma imagem que até perde os seus personagens de vista por não consegui-los seguir totalmente. Essa simples escolha é primeiramente uma forma muito mais honesta do cineasta declarar que tudo o que veremos parte da sua câmera, dessa posição de selecionar como aquele mundo será representado por um lugar de dominância total de quem mostra. Além disso, é uma maneira de vermos aqueles personagens de fora, por essa câmera observadora, colocando-os em uma posição de igualdade, criando a empatia então pelas interações, pelo toque, por uma câmera quase sempre próxima, que tem em sua desestabilização um senso de realidade, reforçado pelas atuações.
Assim, a deficiência de Bruno é sim ponto fundamental para a trama de Saudade Fez Morada Aqui Dentro, mas ela não é uma definição do que é o personagem e, muito menos, impede a narrativa de se ampliar para além da premissa. O longa pensa na empatia e no carinho acima de tudo, naquele momento difícil da vida de um jovem e como é bom ter alguém ao seu lado para tornar o mundo menos horrível. Bruno, que é o condutor da narrativa, deixa de ser o único ponto de interesse. O filme se faz pelas interações entre ele e o demais, tendo como momento mais doloroso quando o garoto fica sozinho, sobretudo pela ausência de carinho que essa situação demonstra, mas, principalmente, a narrativa permite ao protagonista ser também um personagem que tem sua empatia e suas ações testadas, às vezes, questionáveis por algum egoísmo, às vezes, e sobretudo, alguém que recusa o preconceito tão dominante em pessoas próximas a ele, uma demonstração de amor e respeito para com o outro que ele receberá também em retorno. Borges não precisa ficar pontuando nem gritando tanto os seus temas, eles têm a naturalidade dessa câmera que passeia pelos espaços e pelos personagens deixando um véu de realidade a partir da ficção.