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|Crítica| 'A Substância' (2024) - Dir. Coralie Fargeat

|Crítica| 'A Substância' (2024) - Dir. Coralie Fargeat

Crítica por Raissa Ferreira.

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'A Substância' / Coralie Fargeat

 

Título Original: The Substance (UK/França)
Ano: 2024
Diretora: Coralie Fargeat
Elenco: Demi Moore, Margaret Qualley, Dennis Quaid, Gore Abrams, Hugo Diego Garcia e Olivier Raynal.
Duração: 141 min.
Nota: 4,5/5,0

 

Gradualmente mergulhando no absurdo, filme de Coralie Fargeat usa o horror para materializar os padrões que mastigam mulheres e cospem monstros

Ao mesmo tempo em que muito do que existe em A Substância é fantasia e ficção científica, também é uma realidade fácil de se identificar, principalmente enquanto mulher. Não à toa a escolha para a protagonista é uma atriz que já passou dos 60 anos e que teve o auge do seu sucesso nos anos 80 e 90, sendo descartada pela indústria depois de não ser mais tão jovem e de alguns fracassos de bilheteria. Ver Demi Moore, um dos corpos mais desejados no cinema hollywoodiano há mais de 30 anos, incrivelmente bonita interpretando uma mulher dez anos mais jovem, e, ainda assim, sofrendo com os padrões impostos pela indústria e com o envelhecimento de sua pele e seu corpo, é um tanto doloroso. Elisabeth Sparkle vive de sua imagem, mas muito apegada a um passado, a estrela na calçada da fama que cria uma introdução muito interessante sem precisar alterar o ponto de vista, revela exatamente a essência da personagem, alguém que já foi relevante e brilhante e, por isso, tem seu nome registrado, mas se torna menos importante aos poucos, só mais um pedaço da história do cinema e da televisão que não chama tanta atenção. O filme de Coralie Fargeat vai desse lugar mais comum e simples de se relacionar, a boa e velha história do moedor de carne que é hollywood, para se tornar gradualmente mais absurdo e desesperador, mergulhando de cabeça no terror que é ser mulher e envelhecer nesse mundo. Vamos de personagens que pouco falam, atrizes que se calam e processam informações, até gritos angustiantes de horror. Usando os espaços, A Substância por vezes abre suas cenas para isolar Elisabeth em grandes quartos vazios e em outros momentos usa closes muito próximos em seus personagens para distorcer e desespacializar. Somam-se a esses elementos o trabalho de som e trilha sonora que dão peso e impacto a cada choque corporal. É um longa que busca o desconforto de estar nessa pele, o desespero de ser mastigada e cuspida por esse trabalho que retira a humanidade, sobrando apenas o monstro.

É interessante como logo no começo, para construir esse caminho sem opções de Elisabeth em seu aniversário de 50 anos, a escolha de filmar seu acidente de carro se dê por dentro do carro, observando seu corpo se chocar diversas vezes no banco e volante enquanto a lataria e os vidros se quebram. Uma cena que normalmente seria vista de fora, na visão da colisão externa, aqui vai por um caminho que define bastante tudo que Fargeat vai tecendo em sua proposta. Sempre que um rosto bate no chão o som grave se eleva, quando a agulha entra na pele ou a água dura do chuveiro cai sobre ela é novamente o efeito sonoro que ganha espaço, como se os corpos de Elisabeth e Sue (Margaret Qualley) fossem armaduras, já que nenhum desses grandes impactos parece capaz de os destruir, pelo menos a princípio, só elas mesmas podem se ferir. É importante, então, como pequenos elementos como o fato de trazer esses sons para frente, em primeiro plano, ajudam a pesar a atmosfera um tanto vazia e minimalista de A Substância. O mesmo ocorre com o quadro na sala do apartamento e o cartaz logo na frente de sua grande janela. A imagem de Demi Moore perfeitamente fotografada e iluminada para ressaltar sua beleza e plasticidade é colocada como uma bigorna no meio do cômodo principal da casa, um objeto que impõe sua presença nesse espaço pouco ocupado. Logo esse peso é colocado em contraste com o cartaz que exibe um corpo ainda mais plástico e perfeito, mais jovem e colorido, e a imagem de Sue se torna a opressão constante bem como um lembrete de seu agora. 

Embora o uso da substância dependa do fato de que ambas são uma só, a notável consciência individual das mulheres cria uma rivalidade entre suas versões. Há quase um paralelo entre uma relação de maternidade que destaca as diferenças entre as idades. Elisabeth é mais responsável, portanto fica a cargo de buscar os kits e se certificar de que tudo está em ordem enquanto Sue apenas aproveita a juventude e o sucesso que conseguiu com seu corpo perfeito. Os closes buscam partes de sua pele sempre muito brilhante e irreal, do nascimento a partir da coluna da matriz que a deixa coberta de um líquido, até as cenas em seu programa matinal. É como ver partes de uma barbie, firmes e emborrachadas, trabalhando um desejo artificial, sem tesão. Já a versão mais velha está sempre com o semblante triste e sério, presa dentro de casa e de sua casca enrugada e desigual. A versão jovem começa a consumir a vitalidade da outra, Elizabeth passa a odiar sua versão mais nova que lhe custa a saúde e longevidade que ainda possuía. A simbiose entre a estrela decadente e a nova queridinha da américa é uma materialização tanto da obsessão da mídia por corpos jovens e ideais de beleza impossíveis quanto das consequências para qualquer mulher na sociedade que passa a se odiar a partir de imagens de adoração ou até mesmo de sua própria antiga versão que aproveitou aquilo que não pode mais ser vivido. A velha Elisabeth vai se tornando, então, uma bruxa comum das histórias, a mulher idosa raivosa, cheia de rancor pela princesa que remove sua vitalidade, assim como Sue a vê exatamente dessa forma, uma aberração que a impede de viver seu presente, já que é só o agora que ela tem, só se vive jovem uma vez.

A fantasia vai se sobrepondo aos pesadelos muito reais de ser uma mulher impedida de envelhecer, seja em hollywood ou na vida mais comum, como consequência desses padrões frequentemente exibidos. A Substância torna visível um grito de desespero contra essas opressões deixando tudo ali, na superfície, descarado sem pedir profundidade, a bruxa, o monstro, os corpos plásticos em programas de ginástica estilo anos 80, a mulher enlouquecida. Não há o que buscar além em suas imagens, são o que são de cara, e, assim, se permitem extrapolar limites, usar referências muito claras também e as levar até a lugares absurdos. Talvez até existam muitos finais no longa, que parece ir se jogando numa espiral cada vez mais grotesca e absurda, mas é justamente essa sensação de perder o controle que Fargeat busca. A jornada de tentar ser jovem a qualquer custo, lutar contra o tempo e a progressão natural da vida, tão pontuado pelos telefonemas que informam a impossibilidade de reverter o que foi tomado, e ser constantemente bombardeada pela necessidade de se manter perfeita para ser amada e desejada. Tudo vai totalmente de encontro a esse descontrole final que deixa as imagens transbordarem em sangue, pedaços corporais e outros fluidos, o extremo mais extremo que consegue-se chegar para tentar ser o que esperam de você enquanto mulher. 

Embora essa monstruosidade feminina meio Carrie com aldeões e tochas possa ser o auge do horror no que tange a encenação gore, provavelmente o momento mais angustiante de A Substância é ver Elisabeth incapaz de sair para um encontro, brigando com o espelho sempre que vê Sue, o ideal jovem de beleza que a faz sentir-se feia, velha e inadequada. Uma sequência silenciosa, fortalecida pela montagem ágil, e em que os monstros são invisíveis, mas facilmente reconhecidos por qualquer mulher. É essa capacidade de materializar suas ideias e as levar ao extremo absurdo pelo horror que torna o trabalho de A Substância, seja na direção, som ou na coragem de Demi Moore de usar seu corpo como instrumento para essa obra, um grandioso feito que começa no mal-estar e termina vomitando tudo em sua audiência. 

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