|Crítica| 'Othelo, O Grande' (2024) - Dir. Lucas H. Rossi
Crítica por Victor Russo.
'Othelo, O Grande' / Livres Filmes
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Lucas H. Rossi se coloca em um lugar de humildade e se transforma em um organizador, enquanto temos o próprio Grande Otelo contando sua história e fazendo o recorte sócio-cultural brasileiro
É muito comum em filmes de homenagem, seja ficção ou documentário, uma padronização formal, sempre com a ideia de passar pelos principais eventos da carreira do cinebiografado, e, no documentário, com a inserção de pessoas que conheceram aquela figura exaltando-a diante da câmera, como é comum no formato mais clássico, o “talking heads”. Se já citei Othelo, O Grande na crítica recente de Fernanda Young - Foge-me Ao Controle é justamente porque as duas obras, lançadas com uma diferença de semanas no circuito comercial brasileiro, são casos raros de criatividade pela simplicidade, com um entendimento de quem era aquele ou aquela protagonista, ambos já falecidos, sabendo que nada combinaria um filme careta e engessado sobre eles. Cabe então aos cineastas se despirem de qualquer arrogância, assumindo um lugar de organizador, evidenciando menos o papel do diretor, ainda que seja mais complexo do que aqueles que sentam em cima do formato padronizado.
Assim, Lucas H. Rossi tem um cuidado e sabedoria ao fazer do seu filme uma colagem de tudo aquilo que já havia sido dito e mostrado. Imagens e sons, ora sincronizados, ora combinando narrações e entrevistas a trechos de filmes e outras imagens sobre o Grande Otelo, são os condutores dessa narrativa que nunca dá folga, dando a sensação de que o próprio ator/comediante/compositor está contando e conduzindo sua história, abrindo-se ao mais pessoal, mostrando sua casa, família e vestido com todo o conforto, revelando momentos íntimos, como a perda da ex-esposa e do filho, obrigando-o a abstrair a realidade para seguir fazendo sua arte, e, o que ganha ainda mais atenção por parte de Rossi, o olhar do ator para toda a relação sócio-cultural do país, com foco na desigualdade racial. É curioso, então, a escolha por abrir o filme com uma resposta de Grande Otelo que negaria uma preocupação de agir e se posicionar politicamente, revelando-se a si mesmo como comediante e tendo sua “política” o “fazer rir”.
É a partir dessa declaração que o artista vai se revelando como uma persona ainda mais complexa, entendendo desde pequeno que suas maiores possibilidades viriam do reconhecer contextos, abaixando a cabeça primeiro para poder se posicionar depois. E quanto mais ganhava espaço no meio, mais o ator passava a exigir igualdade e entender a sua capacidade de negociar e enfrentar. Rossi vai então traçando décadas de sociedade brasileira, revelando o racismo, o espaço tímido que vai sendo cedido à força e como a cultura, seja cinema, música, teatro ou televisão, vai sendo relevante para estabelecer um imaginário popular e revelar as contradições dessa burguesia, como a história relatada pelo ator de se apresentar em um cassino que não permitia a entrada de negros na plateia.
Esse olhar que parte antes mesmo do seu nascimento vai transcorrer seus quase 80 anos de vida, revelando como o Grande Otelo compreendia o papel da arte em sua vida e em toda a construção dessa sociedade racista, mas, apesar de só ter o ator e aqueles que passaram por sua vida em tela, é justamente o trabalho de Rossi que provoca cada efeito, reflexão, indignação e divertimento. É o saber qual imagem selecionar junto a qual som, qual trecho de filme mostrar na íntegra, como a sempre emocionante cena principal de Rio, Zona Norte. Sobra a Othelo, O Grande graça, emoção e percepção do mundo, sobra ao documentário a compreensão da grandeza que teve o maior ator da história do cinema brasileiro.