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|Crítica| 'Stop Making Sense' (1984) - Dir. Jonathan Demme

|Crítica| 'Stop Making Sense' (1984) - Dir. Jonathan Demme

Crítica por Victor Russo.

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'Stop Making Sense' / O2 Play

 

Título Original: Stop Making Sense (EUA)
Ano: 1984
Diretor: Jonathan Demme
Elenco: David Byrne, Chris Frantz, Jerry Herrilson, Tina Weymouth, Ednah Holt, Lynn Mabry e Alex Weir.
Duração: 88 min.
Nota: 5,0/5,0
 

Jonathan Demme e Talking Heads transportam os espectadores para outro universo por meio de uma sintonia caótica entre música, imagem e autenticidade daquelas personalidades

Pensar na distinção entre ficção e documentário no cinema é sempre uma missão mais árdua e complexa do que as definições mais padronizadas sugerem, sempre indo na linha de que o documentário é o real e a ficção é uma mentira encenada. Tal separação simplória é um tanto culpa da prática do documentário, pelo menos aquele mais comercial, ser majoritariamente careta e estandardizado, dominado pelo modelo talking heads (nada a ver com a banda ou com Stop Making Sense, e, sim, o nome dado para aquele formato com entrevistas e pessoas comentando sobre o assunto ou a personalidade tratada), quando, na verdade, o que vemos aos montes pelo mundo, em festivais, são filmes que rompem essa barreira mais simples, como se tornou comum na mistura de ficção e documentário do cinema iraniano ou mesmo no cinema brasileiro contemporâneo, em obras que lidam com encenações, sendo o caso mais célebre The Thin Blue Line, ou mesmo pensar nos primeiros filmes do Irmãos Lumiére como possíveis documentários e no considerado primeiro documentário, Nanook, O Esquimó, em que quase tudo ali é fabricado. Toda essa breve reflexão não é para questionar se o filme de Jonathan Demme é ou não um documentário, ele certamente é, mas justamente para romper essa ideia enlatada e rasa do que definiria um documentário, indo na linha do que diria um dos maiores teóricos sobre o assunto, Bill Nichols, do documentário como o uso criativo da realidade. É nesse sentido que Stop Making Sense se diferencia completamente de quase todos os comuns filmes-concertos, no perceber como afetar e manipular os sentidos e percepções por meio da linguagem audiovisual.

Ao contrário da maioria dos filmes sobre shows, em que a câmera (usarei o termo no singular para falar sobre a decupagem, ou seja, aqueles planos que nos são mostrados, quando, claro, obras assim têm várias câmeras operando simultaneamente) vira um mero aparato de fragmentar a realidade naquilo que soa mais importante mostrar, caindo, mais uma vez, em um lugar um tanto genérico, de passear ou cortar entre os membros da banda e, em seguida, pular para a plateia eletrizada, cantando junto com aqueles artistas, antes de retornar mais uma vez para eles, Stop Making Sense encontra uma simbiose muito mais complexa e rara, que parte de um planejamento prévio entre Demme e Talking Heads, pensando um show não apenas como a banda tocando para o público, mas compondo toda uma narrativa imagética-sensorial por meio dos cenários, figurinos e jogos de luzes. Entretanto, se essa combinação cria um resultado tão surreal é porque esse vínculo entre banda e diretor encontra uma percepção para muito além das músicas, mas totalmente dependente delas. É uma compreensão imagética de como transformar aquela apresentação em uma perfomance particular, transmitindo a persona dos integrantes da banda e suas excentricidades, sobretudo a do sempre energético, divertido e talentoso David Byrne, e montar essas imagens a fim de captar o que o Talking Heads é, do som a todos os elementos performáticos. 

Vemos então o show começar apenas com Byrne, em um cenário vazio em construção, abrindo já com Psycho Killer, a música mais celebrada dos Talking Heads, a partir de uma caixa de som, um violão e a voz e dedicação corporal do músico e vocalista. Aos poucos, esse palco vai sendo montado, instrumentos, telas, luzes etc, vão se apresentando a partir da entrada de cada um dos nove membros responsáveis pelo concerto. É a ideia de compor aos poucos, ir formando esse espetáculo diante dos olhos de todos, não soa como algo fabricado, mas legítimo, a autenticidade de cada integrante da banda, metaforicamente nu diante do público. Não há o que esconder, eles estão ali, chegando com todo o maquinário que a equipe de produção vai adicionando. A trucagem passa no máximo por um apagar de luzes ou entrada e saída de alguns integrantes do palco, mas vemos cada montagem, e elas envolvem os nossos sentidos, dão um fator visual para as músicas, dos telões, imagens, textos, luminárias, além todos os adereços que vão fazendo de cada canção um universo particular a ser combinado com uma nova modalidade a seguir. É um filme que criativamente se reinventa, não é apenas um show, é um mundo que existe em outro universo diante do palco e está em constante metamorfose.

Só que, a partir do momento que o show começa, tudo é Talking Heads, certo? Demme perde seu papel? De forma alguma, como tudo no cinema, o que importa é justamente o “como”. As músicas pertencem à banda, assim como cada dança, corrida pelo palco ou empolgação. Demme é o olho que nós veremos, ele vai construir a narrativa a partir da decupagem, elemento mais fundamental do cinema. Como mostrar, qual câmera integrar em cada momento, quando cortar entre diversos integrantes e quando se manter firme em um, em Byrne na maior parte do tempo, mas não só ele. A química entre cada um dos nove também é fundamental, as interações intradependentes que criam alguns dos momentos mais marcantes. É a particularidade de uma banda que combina música e performance ganhando vida e criando uma simbiose com o que só o mais dedicado e atento da linguagem cinematográfica é capaz de criar. O palco é esse universo à parte que nos envolve e, só ao final, quando a câmera se afasta dele para mostrar os rostos da plateia, percebemos que a nossa reação, diante de uma tela em uma sala escura, é um tanto semelhante àqueles que assistiram à apresentação ao vivo. Eles eram parte daquela energia, fizeram parte daquele organismo caótico e belo, apesar de só lembrarmos que havia vida para além do palco nesses momentos finais. Mais uma vez, a escolha do quê e como mostrar, a forma como Demme se integra aos Talkings Heads durante essa quase 1h30 eletrizante é pura magia.

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