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|Crítica| 'Bernadette' (2024) - Dir. Léa Domenach

|Crítica| 'Bernadette' (2024) - Dir. Léa Domenach

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Bernadette' / Imovision

 

Título Original: Bernadette (França)
Ano: 2024
Diretora: Léa Domenach
Elenco: Catherine Deneuve, Denis Podalydès, Michel Vuillermoz, Sara Giraudeau e Laurent Stocker.
Duração: 94 min.
Nota: 2,5/5,0
 

Com cinebiografia engraçadinha, Léa Domenach evita qualquer complexidade que possa desagradar e se foca nos contornos mais simples e inofensivos

Com muita pompa, um coral anuncia musicalmente que este é um filme baseado em fatos reais, mas que é, acima de tudo, uma obra de ficção. Léa Domenach, estreante na direção, se isenta rapidamente de qualquer confusão ao deixar bastante claro que seu trabalho bebe da história, mas não a retrata exatamente como foi. Parece engraçado uma autora se colocar assim, tão assustada atrás de uma máscara cômica, conversando com seu público para explicar que o cinema é na verdade uma mentira encenada, se aproveitando de ferramentas do musical para estabelecer ainda mais esse véu de fantasia. O coral de Bernadette é quase esquecido no longa, retorna mais umas duas vezes lá pela metade e ao fim, não é uma lembrança recorrente a quem assiste de que aquilo é uma obra de ficção, o que ocorre é o contrário. A diretora opta por mesclar imagens reais ou simulacros granulados que reconstroem momentos históricos, a visita de Hillary Clinton, as posses do marido Jacques Chirac e afins, são alguns exemplos que mostram uma inclinação a relatar linearmente fatos ocorridos, embora exista essa isenção atestada. São utilizados também recursos comuns às cinebiografias, períodos bem identificados por legendas com mês, ano, local e especificação do que estava ocorrendo, acontecimentos marcantes como a morte de Lady Di diretamente atrelada à narrativa do casal também reforçam essa necessidade de contar uma história mesmo que a contradição já esteja bem estabelecida. Bernadette faz esses pontos serem relevantes, pois lida com política, com uma família importante da França e sua jornada em altos cargos, mas faz questão de se manter bem longe de qualquer complexidade em seus personagens ou atitudes, se escorando na comédia simples para resultar em algo inofensivo e engraçado que não busca olhar a fundo para nada que levanta. Por exemplo, o machismo que é central à forma como o longa retrata Bernadette é meramente uma ideia pincelada, nunca explorada em sua complexidade, justamente por essa barreira imposta na condução. 

Algo que se vê muito nas cinebiografias masculinas é o ato de retratar um homem importante a partir de sua relação complicada com uma mulher. Usam-se esposas como protagonistas culposas, sem intenção de serem realmente o foco, mas para dar nuances ao marido que engana, mente, tem diversos casos fora do casamento, bebe muito, e por aí vai, costumeiramente chegando a uma redenção que apela a um amor verdadeiro que seria difícil de lidar, pois gênios são realmente muito enigmáticos. É um respiro então que uma mulher escolha como seu objeto central uma figura feminina (com uma grande atriz como Catherine Deneuve em seu papel) e que os obstáculos conjugais sejam colocados não para a santificar por sempre perdoar e seguir em frente, compreendendo seu terrível companheiro, mas como combustível para se tornar uma figura mais relevante que ele, com mais voz e agência. O grande feito de Bernadette é justamente esse, mas vem acompanhado de uma trava que impede o aprofundamento nesse retrato. Os Chirac são figuras de direita, o que é colocado na narrativa pelo próprio filme como um embate à classe artística, já que todos seriam de esquerda - e embora tenha algum fundamento, não é exatamente verdade. Domenach parece sentir algum peso nessa relação e ao invés de assumir a complexidade de suas personalidades trabalhadas, opta por uma superficialidade sempre se escorando nas saídas fáceis da comédia para não ofender ninguém. Desde as primeiras cenas o longa se isenta, então não é surpresa que ele sustente essa barra até o fim, mas é algo que enfraquece bastante o resultado, já que Bernadette parece tão mais interessante, para o bem ou para o mal, em suas ambições e seu crescimento popular, do que a obra dá conta. 

Ainda assim, os esforços para diminuir Jacques Chirac (Michel Vuillermoz), o colocando como um homem incapaz de fazer qualquer coisa sozinho e evitando o observar diretamente, usando reflexos, telefonemas e outros recursos, para sempre o manter fora de foco e abrir esse espaço para Bernadette, são feitos que fortalecem essa representação da figura feminina para além da esposa sofredora traída, dando uma vida a ela além do casamento, embora este seja a causa de seus contextos. No entanto, o machismo e a orientação política estão invariavelmente atrelados a tudo que o longa coloca em cena, Se Bernadette é tão ignorada pelos homens fumando charutos numa sala enquanto comentam o corpo de outra mulher, é impossível não levar em conta esse mundo em que ela está inserida, social e politicamente. Léa Domenach anda nessa corda bamba querendo apenas realizar uma comédia engraçadinha e inofensiva, mas sua história contém aspectos mais complexos que são ignorados em prol desse retrato que não pode desagradar nada nem ninguém. 

Entre alívios cômicos e uma dificuldade de extrair mais sem ultrapassar suas barreiras bem estabelecidas, Bernadette diverte em certa medida como uma obra água com açúcar que fica em paz com todo mundo. É sempre bom ver Catherine Deneuve atuando, e, embora sua personagem tivesse potencial para mais, por sorte não é diminuída em suas condições e se sobressai ao papel habitual de esposa de cinebiografia. Dentro da proposta limitada que o filme assume, faz o que deveria fazer. 

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