|Crítica| 'Cidade; Campo' (2024) - Dir. Juliana Rojas
Crítica por Victor Russo.
'Cidade; Campo' / Sessão Vitrine Petrobras
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Juliana Rojas volta a dividir seu longa em dois, enquanto de novo impressiona por sua capacidade de lidar com tantos gêneros sem parecer muitos filmes em um só
Um dos grandes nomes do cinema nacional da última década e bastante aclamada no Festival de Berlim (vencedora do prêmio de melhor direção da Mostra Encontros por este longa), Juliana Rojas é uma cineasta fora da curva não só no cenário nacional de horror, mas mundial. Isso porque a base do seu cinema parte de comentários sociais, da graça no musical Sinfonia da Necrópole, sobre o preconceito em As Boas Maneiras ou mesmo toda a crítica ao capitalismo e a relação patrão e empregado em Trabalhar Cansa. Ao mesmo tempo, são longas cheios de simbolismos e com uma encenação quase sempre meio afastada, de personagens frios e, às vezes, até agindo com estranheza. Tudo isso junto poderia ser facilmente a definição de qualquer filme de terror da A24 dos últimos 10 anos, muitos deles com uma certa vergonha de ser horror e se focando apenas no drama, no psicológico, nos símbolos e nos comentários sociais. Ou mesmo essa obsessão pela estranheza, como se apenas esse afastamento emocional e situações bizarras se bastassem. Apesar de tudo isso, Rojas pouco tem de seu cinema nessa onda, uma vez infamemente chamada de “pós-terror”, é uma cineasta que para além dessa base, acredita na fantasia, tanto em sua ideia quanto em representação visual, é criativa narrativamente e encontra afeto nesse mundo afastado.
Cidade; Campo traz de volta esses elementos, assim como a estrutura de As Boas Maneiras, aqui por meio de duas histórias teoricamente mais desconexas, unidas pelo tema: a migração campo-cidade. Se na primeira Joana (Fernanda Vianna, em uma das atuações mais belas do ano) é forçada a sair do campo e se mudar para a cidade, na segunda, uma morte faz com que Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer) saiam da cidade para o campo. A primeira hora então se volta para um terror apenas sugestivo, enquanto o comentário sobre a estrutura capitalista retorna. Uma personagem sobrevive a um desastre natural provocado por uma grande corporação, não é indenizada e surge como única opção trabalhar como empregada doméstica para um aplicativo, com cara de descoladinho, daquelas start ups da Faria Lima que pagam de preocupadas com o mundo, com as diferenças sociais e pessoais, mas, na prática, só embelezam a face da velha exploração de sempre. Ainda que encontre afeto no sobrinho-neto ou nas colegas de trabalho, há uma conscientização desse futuro na cidade, mesmo que tente levar seu cantinho e conhecimento do campo com a sua horta e as mãos, às vezes com terra, que Rojas faz questão de filmar com carinho. Por mais que brinque e aterrorize o menino, é na passagem desses ensinamentos que Joana parece ver um fio de esperança. Se não nos é mostrado concretamente o resultado da união das trabalhadoras, da qual ela faz parte, contra os patrões, é justamente porque a cineasta endossa essa luta, mas tem consciência de que elas serão esmagadas pelo sistema. O futuro não está na cidade, não para Joana.
Entretanto, quando migramos junto com Flávia e Mara, percebemos um campo devastado, também sem esperança para o que vem depois. O afeto mais uma vez se faz presente, essa união para tentar buscar um pouco de conforto nessa dor que é viver. Só que, se na primeira história as pinceladas de terror eram inseridas no drama urbano com passagens musicais pontuais para reforçar a dor da personagem ou a fuga da realidade por parte das amigas, na segunda, o terror sobrenatural ganha corpo, assim como a fantasia, uma mística daquele lugar que faz as personagens temerem pelo desconhecido, mas sentirem vontade de adentrar e conhecer esses seres mitológicos que guardam a casa e a floresta, sendo, possivelmente, uma conciliação com que está enraizado ali o vislumbre de futuro que elas buscam. É o campo enquanto mística e dever a ser cumprido, não exatamente com a romantização muito costumeira. A fantasia, tão cara ao cinema de Rojas, mais uma vez é transportada do discurso para a imagem, na montagem de uma dança de Mara, que parece possuída ou enfeitiçada, na figura do lobo ou em como revela o mistério daqueles que os corpos já foram, mas continuam ali em espírito. A própria noção do que é real e o que é parte de um ritual alucinógeno se faz presente a ponto de não importar mais a diferença. Ao contrário do “pós-terror” (entre um milhão de aspas), que geralmente só sugere e pede interpretação, a cineasta expõe, faz questão de exibir, entende o poder da imagem para defender a sua fantasia, tal como o do afeto e prazer, pela evidência dos corpos nus se tocando.
O mais surpreendente é justamente como histórias desconexas, em lugares quase opostos e que se balançam mais para um gênero (musical) ou para o outro (fantasia), nunca soam como obras distintas. A encenação se preserva a ponto de parecer tudo a mesma coisa, ainda que o filme nos introduza novas personagens para criarmos vínculo e afeto. Funciona também porque Rojas entende como poucos e poucas dessa representação do feminino. O discurso não precisa ser dito, como geralmente acontece nos filmes que anseiam por falar algo, ela diz calada, ou melhor, mostrando. É narrativa de imagens sendo colocadas uma em sequência da outra, se desenvolvendo por esses espaços, reforçando esse mundo duro, mas que tem como única possibilidade as mulheres, das mais cansadas, como a avó e sua irmã (Joana), passando pelo casal Flávia e Mara, em um período de indecisão para com o futuro, e tendo como única exceção o sobrinho-neto de Joana, garoto criado apenas por mulheres e recebendo ensinamentos delas. Os homens apenas estão ali, ou morrerão, ou as abandonaram. Resta apenas a essas mulheres vislumbrarem essa vida dura e projetarem alguma possibilidade de reconstrução.