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|Crítica| 'Motel Destino' (2024) - Dir Karim Aïnouz

|Crítica| 'Motel Destino' (2024) - Dir Karim Aïnouz

Crítica por Victor Russo.

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'Motel Destino' / Pandora Filmes

 

Título Original: Motel Destino (Brasil)
Ano: 2024
Diretor: Karim Aïnouz
Elenco: Iago Xavier, Nataly Rocha, Fábio Assunção, Yuri Yamamoto e Isabela Catão.
Duração: 112 min.
Nota: 3,5/5,0
 

Karim Aïnouz toma emprestado os elementos base do cinema Noir, criando pelas cores e a definição brasileira de “motel” uma das ressignificações mais inusitadas do gênero

Poucos fenômenos cinematográficos são tão instigantes quanto o Filme Noir, que durou entre o começo da década de 1940 e final da década de 1950. A começar pelo fato de que esses filmes foram sendo feitos sem uma visão homogênea de gênero, eram, em teoria, filmes de crimes, que só foram receber tal denominação pelos franceses no pós-guerra, que ao se deparar com uma enxurrada de obras hollywoodianas, encontraram uma sintonia nesses longas decadentes, escuros, cheios de sombra, estilizados, sensuais, moralmente questionáveis, com uma mulher quase sempre levando o protagonista masculino à perdição, a femme fatale (mulher fatal), uma representação da sociedade americana pós-guerra em que os homens voltando do combate se sentiam ameaçados pelas mulheres entrando no mercado de trabalho e “roubando seus empregos”. Foram tantos elementos, esses e muitos outros (protagonista detetive particular, influência do expressionismo alemão pelos diretores que migraram da Alemanha para os Estados Unidos, sequências com escadas, espelhos, de sonho e por aí vai), que marcaram esse Cinema Noir, um dos mais debatidos a partir desse período sem nunca ter uma definição clara, se era gênero, apenas um estilo ou subgênero do filme policial ou um sentimento (definição que gosta mais). Isso porque, acima de tudo, quase nenhuma das obras consideradas dentro desse escopo continham todos esses elementos como se fosse uma regra, era uma espécie de guarda-chuva, em que algumas obras tinham uns, outras tinham outros, poucos continham a maioria. 

Verdade é que, apesar de tudo, o Noir virou uma marca cinematográfica que influenciou as mais diversas obras posteriormente, os chamados neo-noir, que até Alfred Hitchcock pode ser considerado um precursor indireto com Um Corpo Que Cai. A cor permitiu novas estilizações ao gênero, o fim do Código Hays (censura moral dos estúdios que durou até a década de 1960) incorporou o noir em grande medida ao thriller erótico, dominante em Hollywood nas décadas de 1980 e 1990, com muitas nudez, sedução e violência. Blade Runner levou o Noir à ficção científica futurista cyberpunk, David Lynch ao surrealismo, Irmãos Coen a uma maneira de lidar com consciência ao que já veio antes, Akira Kurosawa para o contexto Japonês (com Cão Danado), Louis Malle para uma Nouvelle Vague nascendo, Jules Dassin para o pré-Nouvelle Vague, Jean-Pierre Melville para o pós, até mesmo o recente The Batman, de Matt Reeves, é certamente um Neo-Noir. Só que, apesar dos comentários sobre a decadência social de personagens de moral questionável, o sexo, a sensualidade e a violência estarem tão presentes no cinema brasileiro, inclusive em filmes do Cinema Novo que se apropriaram e modificaram outro gênero tipicamente Hollywoodiano (Glauber Rocha, por exemplo, pegava o faroeste emprestado), o cinema brasileiro, ainda que com alguns exemplares, como Signo do Caos, de Rogério Sganzerla, pouco olhou para o Noir, e parecia um prato cheio.

Karim Aïnouz não só tem em Motel Destino um dos raros casos de Neo-Noir à brasileira, como cria uma relação um tanto inusitada, de se apropriar da base do gênero e alguns de seus tropos narrativos, ao mesmo tempo que o leva para um lugar que não poderia ser mais distante de onde o Noir surgiu. Assim, Heraldo (Iago Xavier) até se assemelha ao protagonista de moral questionável e que vive em uma espécie de submundo decadente, enquanto Elias (Fábio Assunção, em uma das atuações de sua vida) cabe bem nesse contraponto do psicopata imprevisível e impiedoso, e Dayana (Nataly Rocha) seria uma das femme fatale que não quer exatamente o mau do protagonista, no caso, ama ele realmente, mas ainda assim, a sua mera presença é suficiente para colocá-lo em novos perigos. Ainda há a personagem de Isabela Catão, com passagem curta pela narrativa, que aí assim é uma dama fatal que o prejudica com todas as intenções. Para além disso, um assassinato move a trama, ainda que passe longe de ser o foco dela, o protagonista foge de seu passado, sexo e sedução se fazem presente, assim como violência, uma grande estilização visual, sequências alucinógenas etc. Todos elementos recorrentes do Noir, um tanto ressignificados aqui pelo contexto.

Para além de se passar no Ceará, tendo as praias e, principalmente o calor que nos faz transpirar ao ver esses personagens derretendo (o que até lembra bastante Corpos Ardentes, de Lawrence Kasdan), a própria escolha de centrar o filme quase todo em um Motel já é uma escolha única. Ali está esse pedaço de Brasil e só Brasil. Nada do Motel americano de beira de estrada, que mais parece uma pousada. É esse ambiente que as pessoas vão para transar, ter prazer, esquecer do mundo lá fora e, com bastante frequência, termina em violência ou morte (no caso do longa, é claro). Parte da incompreensão dos que assistiram ao filme em sua estreia no Festival de Cannes passava justamente por isso, a impossibilidade de conceber que aquele lugar era real. Ele é, e muito brasileiro.

Assim, se Ainouz pega emprestado os códigos desse gênero americano, aos poucos vamos esquecendo do Noir e vendo só aquele submundo fictício cearense cheio de realidade, da mesma forma que o cinema brasileiro e do diretor vai se sobrepondo a qualquer noção hollywoodiana. A gangue queer é o primeiro passo da história nesse sentido, enquanto a narrativa já se apresentava com cores vivas nos primeiros planos da praia. O motel é o destino final que se estende por quase todo o longa, esses personagens que transpiram de tesão, uns pelos os outros, a maioria por Heraldo e ele só quase por Dayana, mas também pelo sexo dos outros, a posição de voyeur, de sentir vendo, tão característica do espectador de cinema, nesse caso, eles vendo sexo diante dos olhos, enquanto nós também vemos aquela representação sexual de um lugar ainda mais seguro.

Só que vai além, e talvez isso marque Motel Destino ainda mais como um neo-noir brasileiro bastante inusitado. As cores fortes do motel podem transpirar paixão e desejo, o neon vermelho, roxo, verde, grita essa estilização que pertence à mise en scene, e marca esses personagens. Porém, para além do estilo das cenas nos quartos de hotel, dos sonhos ou alucinações, e mesmo dos espaços mais reais, como a praia ao pôr-do-sol, há uma rejeição à trama clássica hollywoodiana. Se for para falar de uma sociedade difícil de enxergar o futuro, que falemos ao nosso modo e não apenas repliquemos aquele país que ama querer dominar a narrativa do mundo. A relação de causa e consequência até existe, mas não vai além de certo ponto, as coincidências tomam conta, dando fim a personagens e tramas relevantes, sem que o protagonista precise fazer nada. Para ele, basta viver um dia de cada vez, transar e tentar sobreviver. O resto é torcer, tentar aproveitar e sonhar sem esperança com a possibilidade de um futuro melhor.

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