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|Crítica| 'Mami Wata' (2023) - Dir. C.J. Fiery Obasi

|Crítica| 'Mami Wata' (2023) - Dir. C.J. Fiery Obasi

Crítica por Victor Russo.

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'Mami Wata' / Filmicca

 

Título Original: Mami Wata (Nigéria)
Ano: 2023
Diretor: C.J. Fiery Obasi
Elenco: Evelyne Ily Juhen, Uzoamaka Aniunoh, Emeka Amakeze e Rita Edochie.
Duração: 107 min.
Nota: 4,0/5,0
 

Auxiliado pela cinematografia de Lílis Soares, C.J. Obasi tem em seu conto fantástico um grito estético sobre as tradições e as consequências da colonização

Indicado pela Nigéria para o Oscar 2024 e que rodou festivais pelo mundo, incluindo a Mostra de Cinemas Africanos no Brasil (São Paulo e Salvador), na qual foi o filme de abertura, Mami Wata parte de uma temática predominante do cinema africano como um todo: as consequências da colonização. Ver filmes de diferentes países do continente na Mostra, obras essas que raramente chegam em circuito comercial, trazem consigo as particularidades de cada país, suas culturas e conflitos, além de abordagens narrativas variadas, mas são poucos os que não têm a dominação e repartição da África pelos Europeus como tema presente, direta ou indiretamente. Nesse sentido, o longa de CJ Obasi, magistralmente fotografado pela brasileira Lílis Soares, entende como poucos a capacidade do cinema, enquanto linguagem, de construir uma identidade cultural. Muito mais do que sobre o que a história do filme é, o destaque se volta justamente para essa combinação entre cinematografia, direção de arte, figurinos e personagens (sobretudo femininas) em tela. O preto e branco de alto contraste preserva um certo mistério místico nessa escuridão, enquanto os detalhes em branco desses figurinos e das tintas nos rostos criam imagens difíceis de esquecer. É a estética enquanto grito de resistência e fortalecimento cultural. A fotografia como discurso político de quem compreende que cinema é antes de tudo imagem.

Então, se por um lado Obasi cria um discurso um tanto didático sobre esse conflito entre as tradições e o agente externo, o que vem de fora para vender um progresso que representa não só a destruição do que faz daquele espaço único, mas, principalmente homogeneizar tudo a favor de uma forma de se viver que não aquela, mas de uma estética dominante, o trabalho cinematográfico do cineasta trata de complexificar esse discurso. Não só pela já citada combinação de tons e cores da fotografia e dos demais elementos visuais, como também pela amplitude que aquele espaço adquire, amplitude essa que não está necessariamente na imagem, pelo menos não durante boa parte do longa, que filma essas mulheres, como as guardiãs das raízes locais, de perto, captando pelos contrastes da imagem esses rostos poderosos, mas sobretudo pelas escolhas sonoras, que tratam de dar destaque constante para as ondas ao fundo, o mar que é visto como esse ser místico, lugar dessa deusa que Obasi não abre mão de mostrar, assim como um caminho para o desconhecido estrangeiro e por onde aqueles colonizadores virão. O mar é harmonia, mas também apreensão e violência, e o destaque dessas águas é tão marcante que são justamente essas cenas em que o contraste tonal da imagem diminui e o plano se abre para vermos essas mulheres criando uma espécie de simbiose com essa praia. O som também marca os assustadores sons das armas, essa ferramenta da modernidade criada para matar e gerar conflito, a desunião local trazida pelo estrangeiro como esse símbolo de poder dos homens pequenos. Cada tiro parece uma agressão aos costumes e aos que ali vivem, o som seco e abafado ecoa com espanto.

Dessa forma, Obasi cria pelo que há de mais cinematográfico, a imagem e o som, não apenas uma estética única que valoriza as crenças e espaços nigerianos como uma resistência ao forasteiro, mas todo esse discurso perpassa o folclore que está em tela e adquire um caráter político sobre o controle cultural universal e sua homogeneidade. Se a estética de Mami Wata parece tão diferente do que estamos acostumados a ver, sobretudo por aqueles espectadores que só assistem aos filmes que chegam massivamente de Hollywood, é justamente porque estética é discurso, o mais poderoso de todos, aquele que não precisa de palavras para entrar nas nossas mentes e criar uma realidade. Esse grito de resistência de Obasi e Soares se volta para o passado e para aquilo que foi perdido, a comunhão e equilíbrio rompidos pela modernidade violenta e que não pede passagem, só que vai além, tem no cinema como a defesa de uma arte capaz de falar por si só, de ser e mostrar que o mundo é muito maior do que o escopo que os blockbusters e as Netflix da vida desejam mostrar.

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