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|Crítica| 'Caminhos Cruzados' (2024) - Dir. Levan Akin

|Crítica| 'Caminhos Cruzados' (2024) - Dir. Levan Akin

Crítica por Victor Russo.

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'Caminhos Cruzados' / MUBI e O2 Play

 

Título Original: Crossing (Suécia)
Ano: 2024
Diretor: Levan Akin
Elenco: Mzia Arabuli, Lucas Kankava, Deniz Dumanli e Tako Kurdovanidze.
Duração: 106 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Mais uma vez o MacGuffin se prova como um poderoso artifício para a representação de um lugar e das relações humanas

Caminhos Cruzados é um daqueles filmes que traz consigo a repetição do clichê “é um filme sobre a cidade” (ou, sua variação, “a cidade é um personagem”). Longe de ser mentira, o problema dessas frases prontas é que elas ignoram um contexto narrativo geralmente maior, e não é diferente no filme de Levan Akin. Então, se Lia (Mzia Arabuli) fala em determinado momento para Achi (Lucas Kankava) que Istambul é um lugar onde as pessoas vão para não serem encontradas, é o próprio filme reforçando a cidade mais famosa da Turquia como esse palco para o desenvolvimento dos personagens, dos milhares de gatinhos fofos por tudo quanto é lado, passando pelas ruas estreitas cheias de pessoas, até uma relação cultural com aqueles que vêm de fora e as barreiras linguísticas a partir disso, como os dois personagens centrais. Mas se Istambul vai adquirir esse peso imagético e cultural é justamente por escolhas que vão desde um artifício dos primórdios do cinema narrativo, até outras que o aproximam do chamado cinema de fluxo (ainda que o filme como um todo pouco tenha a ver com essa tendência que ganhou relevância em festivais de cinema desde o começo deste século).

Muitas vezes encarado apenas como um objeto a ser encontrado que move a trama, mas não é o real interesse do filme (Rosebud em Cidadão Kane, Falcão Maltês em Relíquia Macabra, a bicicleta roubada, em Ladrões de Bicicleta, entre tantos outros), o MacGuffin pode ser muito mais amplo, se estendendo a lugares, pessoas, ou qualquer elemento narrativo que puxe os personagens a uma busca por descobrir algo que aos poucos vai se mostrando apenas como uma “boa desculpa”. Se Rosebud, inicialmente apenas uma palavra que precisava ter um significado encontrado, serve ao jornalista e ao filme como uma forma de investigar quem foi Charles Foster Kane, do seu íntimo, desde sua infância, até o magnata impetuoso e detestável de suas últimas décadas de vida, seja o MacGuffin mais famosos da história do cinema, talvez nenhum filme tenha sido tão bem sucedido em usar esse recurso como um panorama social quanto Ladrões de Bicicleta, em que a busca por esse objeto roubado revela a Itália devastada pelo pós-Guerra, física e psicologicamente, conduzindo pai e filho de um lado para o outro até que não reste mais nenhuma solução a não ser levar o adulto a decepcionar o seu filho com atos desesperados. Nesse sentido, é curioso que o filme de Akin seja lançado no mesmo ano de Arzé, de Mira Shaib, exibido no Festival de Tribeca 2024. Isso porque ambos vão se usar do MacGuffin para construir uma realidade social e cultural em uma cidade grande do Oriente Médio, ainda que o filme libanês, que tem Beirute como seu palco, siga um formato um pouco mais tradicional e inspirado no filme de Vittorio De Sica, com mãe e filho buscando a motocicleta roubada, ainda que os dois compartilhem dessa grande quantidade de línguas e costumes em conflito em um mesmo espaço urbano.

Já em Caminhos Cruzados, essa cidade em que as pessoas vão para desaparecer torna impossível encontrar Tekla, a não ser como em uma projeção do que poderia ter sido, quando o filme rompe aquela realidade para imaginar. Ela é o MacGuffin, mas não um daqueles que se terá resposta. O seu sumiço e a impossibilidade de encontrá-la remete ao passado que a expulsou de sua casa, o que resta agora é dar a esses novos personagens um sentido de viver enquanto seguem essa busca impossível. Dentro desse contexto de diferentes, Akin vai se apropriar desse modelo narrativo clássico, mas dar um toque bem mais contemporâneo ao ter nesses encontros e desencontros a mesma impossibilidade ou não necessidade de um resolvimento. Aproximando-se do cinema de fluxo, tendência que surge como resposta ou alternativa à narrativa clássica, que tem muito mais o fluxo da vida em imagens como a narrativa em si, o longa turco cria esse jogo de encontros e desencontros, coincidências e não resoluções (como o personagem que paga um jantar para a dupla principal e depois simplesmente some ao se sentir intimidado pela mulher, nunca mais retornando à narrativa), dando um aspecto bem mais realista a essas relações e à própria temática queer do longa, que nos leva a crer de início que tudo girará em torno desse preconceito e agressão às pessoas trans, mas, que, quando em Istambul, vemos uma comunidade muito mais fechada dessas pessoas, com algumas delas, destaque para Evrim (Deniz Dumanli) não só tendo algum sucesso em sua profissão, como sendo aceita e amada como ela é. 

O curioso é que toda a escolha de como mostrar isso imageticamente falando vai em direção oposta. Se abrimos o longa com uma câmera na mão, balançando e adentrando espaços, criando a violência no falar e no agir dentro daquele lugar escuro, enquanto rejeita cortar de um personagem para o outro em diálogos, movimentando a câmera ou os próprios personagens em cena para que isso fosse possível, quando a narrativa anda e temos maior apego pelos três personagens centrais, a câmera vai se acalmando e se aproximando dos rostos, enquanto a decupagem passa a recorrer cada vez mais ao clássico, ao plano e contraplano que é uma das maiores marcas do cinema.

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