|Crítica| 'Como Vender a Lua' (2024) - Dir. Greg Berlanti
Crítica por Victor Russo.
'Como Vender a Lua' / Sony Pictures
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A imagem enquanto construção de realidade e ideologia dominante
"Não importa o homem pisar na lua, mas, sim, os Estados Unidos vencerem a Rússia”, diz Moe Berkus (Woody Harrelson), não exatamente com essas palavras, em determinado momento. O mesmo personagem, a representação materializada da ideologia americana e todas as suas ferramentas de difusão desses ideais pelo mundo, depois ainda vai falar que vale tudo para não deixar o comunismo se espalhar pelo mundo. Essas duas linhas de diálogos, ou qualquer outra que envolve o grande vilão de Como Vender a Lua, fazem de tudo para determinar claramente o que Greg Berlanti quer ironizar com sua comédia romântica, teoricamente inocente e bobinha, a sedimentação do capitalismo em solo americano durante a Guerra Fria por meio de fabricações. Kelly Jones (Scarlett Johansson), essa protagonista charlatã, encontra na publicidade o meio de vender qualquer coisa e rapidamente desperta o interesse do governo de Richard Nixon em época de Guerra do Vietnã e corrida espacial reforça essa visão. Seria então um filme crítico ao liberalismo estadunidense como se esse fosse uma ideologia baseada em mentiras expostas ao mundo como verdades? Não necessariamente.
Enquanto, nos últimos anos, Hollywood tem se colocado cada vez mais em lugar de esclarecer o discurso para não restar dúvidas sobre o que é cada filme, essa indústria altamente e historicamente financiada pelo governo dos Estados Unidos sempre teve seu maior poder de manipulação nas entrelinhas. Do militarismo dos Top Gun, Predador, Rambo 2, entre outros, passando pelo reacionarismo de um Flashdance, até o suposto progressismo atual, rodeado por um conservadorismo velado, em que o sexo e o desejo foram praticamente defenestrados de um cinema “para toda a família”, o que vemos são os mesmo ideais de sempre, mudando apenas a carcaça. É nesse contexto que a sátira ganhou mais espaço e popularidade, utilizando-se de uma autoconsciência que a Marvel ajudou a sedimentar, sem aquela perspicácia de um Wes Craven, mas com toda a autoimportância que um Adam McKay ama. Assim, em tempos de comédia romântica desaparecida e a comédia propriamente dita só existindo como artifício ou quando ligada a outros gêneros (como os filmes da Marvel, mais uma vez), foi a sátira metida a espertinha que caiu como uma luva para o público cada vez mais moralmente engajado, esperando no cinema uma forma de educação, um meio de reforçar os “valores corretos” (lembra do sumiço do sexo e do corpo nu?). Não cabe mais ao espectador qualquer espaço para debate, tudo é dado, as respostas estão prontas, o filme é isso e só isso. Assim o público se satisfaz, e o que pouco se comenta é que, no final do dia, são os estúdios e seus executivos e magnatas que se deleitam com essa dinâmica.
É nesse contexto que surgem filmes como Vice e Não Olhe Para Cima, ou séries como The Boys, explicando suas piadas e tirando sarro da extrema direita, da elite e da burguesia, enquanto, no fundo, nada propõem para além desse ar de superioridade, rir daqueles seres e ideias bizarras, mas não menos perigosos. Foi também esse funcionamento que permitiu a Barbie ser a maior bilheteria de 2023 e uma das maiores da história, com seu feminismo de piadas fáceis, mas que, ao final, quem continua dando a última resposta são aqueles imbecis misóginos que controlam o capital. No fim, todos esses filmes recorrem a uma idiotização das pessoas que pretende criticar, pois, dessa forma, agrada o público e os valores progressistas, mas não realmente ofende quem mantém o poder e detém o orçamento. Ou alguém acha que a Mattel se sentiu ofendida por Greta Gerwig, enquanto lucra com o filme e planeja mais dezenas de outros baseados em seus brinquedos? Ou a Disney vai censurar Deadpool por tirar sarro da própria empresa agora que é propriedade dela e não da Fox?
Em tempos de sátiras de percepções simples, as respostas ou contradições estão nas entrelinhas. Enquanto os filmes de McKay, Ficção Americana, Barbie, Deadpool e outros contradizem o seu discurso na execução, Como Vender a Lua é um caso muito mais consciente, a ponto de tornar a sua autoconsciência um tanto cafajeste. Uma comédia romântica “sessão da tarde” para tirar sarro do capitalismo? Isso é o que parece se a gente só escuta os diálogos e não pensa na narrativa, sobretudo em como as imagens contam essa história. Moe, nesse contexto, é o típico vilão estereotipado e inofensivo, que reproduz o discurso mais evidente, o cara para gente rir dele, ainda que Harrelson segure bem nesse papel canastrão. Mas Lembra que Kelly é uma farsante que encontra sucesso na publicidade? Adicione a isso o certinho Cole Davis (Channing Tatum), seu par romântico. O filme nunca realmente repreende os atos da personagem, pelo contrário, enquanto parece tirar sarro do meio publicitário, revela que ele vende e que a missão Apollo 11 só foi possível por causa disso. Uma piada autoconsciente poderia ser a justificativa até esse momento. Ao mesmo tempo, Davis é o cara íntegro, sentindo-se culpado pela falha do Apollo 1 e incapaz de mentir. O que passa quase despercebido é o fato dele ter servido em dezenas de missões na Guerra da Coreia, citado apenas para exaltar ainda mais o personagem, o militar irretocável. Então, o mesmo filme que abre citando a Guerra do Vietnã como algo mais importante do que a corrida espacial, que flerta com todos os absurdos cometidos pelos Estados Unidos, das vidas de jovens perdidas até os assassinatos contra vietnamitas (uma citação é feita a isso em relação ao napalm), não tem o mesmo olhar crítico à Guerra da Coreia, mais uma das empreitadas criminosas americanas nessa busca por dominar o mundo pelo discurso ideológico. Mais do que isso, o Vietnã que parece o ponto crítico inicialmente, rapidamente é completamente esquecido.
"Mas o filme é uma ironia à corrida espacial”, poderia-se argumentar. Em teoria, tal percepção faria sentido e facilmente justificaria essa supressão da Guerra do Vietnã, enquanto a obra faz questão de verbalmente (mais uma vez, o discurso evidente) repreender Nixon. É a partir de pessoas ligadas ao presidente que partiria aquela teoria da conspiração, famosa na extrema-direita, de que o homem não teria pisado na lua em 1969 e que tudo teria sido construído em estúdio por Stanley Kubrick. Longe de reforçar a teoria, o filme é até astuto ao lidar com isso, sobretudo no momento-chave, fortalecendo o seu discurso central, de uma realidade construída, a imagem como esse elemento que atestaria a verdade e a superioridade do capitalismo, não basta pisar na lua antes dos russos, é preciso filmar para que aquilo se torne verdade, mesmo se os homens reais conseguirem esse feito e as imagens que chegarem nos televisores da população de todo o mundo fossem aquelas fabricadas. O real e a mentira pouco se diferenciam, o que vale é a ideologia dominante sendo transmitida simultaneamente e entrando nas casas das pessoas.
O filme não reforça a teoria da conspiração, pelo contrário, a rejeita, ainda que ela pudesse quase ter vindo a acontecer (na narrativa ficcional do longa). Uma vitória da verdade, da ética, do real, certo? É aí que Como Vender a Lua se revela, ainda que precise perceber um pouco mais para além do que os diálogos expositivos querem entregar. No fim, o discurso é o mesmo, a ideologia está sendo vendida, Cole e Kelly ficam juntos e saem moralmente triunfantes, enquanto a publicidade, o militarismo e a superioridade americana se tornam motivos de orgulho. Só que agora o capitalismo não é uma mentira fabricada para vencer a Guerra Fria, o homem realmente pisou na lua, enquanto Berlanti reforça pela imagem todos esses discursos (os espaços imensos, os foguetes imponentes como demonstração de grandeza, os cientistas dedicados, o indivíduo vencendo um sistema opressor, o amor sem sensualidade), logo, o capitalismo emociona a todos e se apresenta como a única ideologia possível. O filme segue sendo sobre a construção de realidade e ideologia dominante por meio da imagem, mas não por aquela ridiculazinha do estúdio do Moe, e, sim, pela lente de Berlanti, pelos símbolos de poder e afeto que o cinema cria sem dizer, é assim que a ideologia adentra nossas mentes sem que percebamos, até mesmo no filme mais “inocente e sessão da tarde”.