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|Critica| 'Entrevista com o Demônio' (2024) - Dir. Cameron e Colin Cairnes

|Critica| 'Entrevista com o Demônio' (2024) - Dir. Cameron e Colin Cairnes

Crítica por Victor Russo.

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'Entrevista com o Demônio' / Diamond Films

 

Título Original: Late Night With the Devil (Austrália)
Ano: 2024
Diretores: Cameron e Colin Cairnes
Elenco: David Dastmalchian, Laura Gordon, Ian Bliss, Fayssal Bazzi, Ingrid Torelli e Rhys Auteri.
Duração: 93 min.
Nota: 1,5/5,0

 

O rompimento da proposta formal como impossibilidade do filme de ser

Após hipnotizar praticamente todo o auditório e os próprios espectadores, Carmichael Haig (Ian Bliss) pede para que passem a gravação novamente, já que a imagem não mentiria, ela é incapaz de ser hipnotizada, a câmera registraria a realidade a sua frente. Tal passagem não só retorna à questão essencial ao cinema e à imagem em movimento como um atestado de realidade, a ponto de que tudo que não foi filmado pode ter sua veracidade questionada, mas reforça a própria proposta formal do longa, que, em teoria, restringe o que vemos àquilo que as câmeras de televisão do programa captam. Assim, o filme não só depende da premissa formal, ele é essa escolha, só existe por conta dela.

Em certo sentido, os irmãos Caines utilizam-se aqui de uma dinâmica já bem estabelecida no cinema desse século, facilitando o entendimento do público por conta disso também. Entrevista com o Demônio nada mais é do que um continuador do “found footage”. Claro, aqui estamos falando de uma transmissão ao vivo e não de uma câmera encontrada, como A Bruxa de Blair fez e chocou o mundo na era da popularização das câmeras digitais portáteis e acessíveis, antes de tantos outros repetirem a ideia, sendo até muito bem sucedida em outros contextos, como em Cloverfield e a sua invasão alienígena desconhecida como uma alusão ao trauma do 11 de Setembro, mas que não só teve uma saturação, como, sobretudo, uma impossibilidade de ir além, fazendo com que os filmes tivessem cada vez mais dificuldade de manter esse rigor da imagem como se ela estivesse sendo feita por algum personagem segurando o aparato, e não sendo poucos os casos em que a trapaça se tornasse mais evidente, surgindo só anos depois uma nova leva que resgataria o formato, mas com uma consciência nova capaz de revitalizá-lo pontualmente, como as câmeras presas à cabeça em Assim na Terra Como no Inferno ou a protagonista aspirante a cineasta em A Visita. Apesar dessas conquistas pontuais, o found footage já não parecia mais fazer sentido como uma forma dominante, as câmeras de vídeo e mesmo os celulares que filmavam já não eram mais novidade. É nesse contexto que ganha força o “desktop horror”, que não mais simulava uma câmera na mão, mas que restringia a encenação ao olhar estático da webcam de um ou mais computadores, com resultados interessantes em Host e Buscando… (esse dando umas roubadinhas aceitáveis), só para citar dois.

Em um mundo em que a imagem é parte integral e todo mundo já domina essas tecnologias de criá-las e reproduzi-las, os Caines decidem tomar um caminho diferente, não mais o de buscar o novo, mas retornar ao passado para estabelecer uma nova dinâmica pelas formas mais tradicionais de filmar e de consumirmos imagens no conforto da nossa casa, a televisão. Assim, logo após uma introdução de documentário que situa aquele apresentador e o seu show, o que vamos ter é um rigor formal cujo qual o filme não existiria sem. A decupagem se resume a um programa de auditório, tudo, das piadas, reações e conversas, nos é mostrado a partir da sugestão dessas múltiplas câmeras capaz de ver quase tudo que acontece naquele espaço, ainda que dependa de operadores para que qualquer tipo de movimentação espacial (como panorâmicas ou zooms) fosse executada, ao mesmo tempo que a montagem implicitamente necessite de um diretor do programa escolhendo cada plano rapidamente a fim de captar emoções e revelações ao espectador, como sempre foram feitos os programas ao vivo com suas grandes equipes de produção.

Dessa forma, Entrevista com o Demônio se torna puramente essa escolha formal. Apesar das piadas típicas desse programa, dos convidados charlatões e da sátira implícita de que vale tudo pela audiência, os cineastas não recorrem ao que vemos com alguma autoconsciência ou como se o humor ácido fosse a busca final, dentro desse contexto estabelecido pela decupagem praticamente imutável (não inteiramente, pois há a trapaça evidente e um pouco incômoda, ainda que aceitável, nos intervalos que sugerem câmeras acompanhando personagens nos bastidores, não só filmando de um jeito impossível para o formato, mas claramente sendo apenas uma forma de revelar como aquele show está saindo do controle), o filme tem nos elementos de horror a sua atenção principal. A aparição de Lilly (Ingrid Torelli) e a conversa com o demônio em seu corpo é o segmento do programa que vinha sendo prometido desde o início. Até quando Haig sugere que aquilo é uma farsa por meio da sua hipnose, o momento que nos é apresentado é assustador e busca um choque visual, reforçado pelo próprio personagem fingindo que não estava mais comandando aquelas ações.

É justamente por isso que as sequências finais não só não funcionam, elas impedem o filme de existir enquanto unidade, tiram a razão de ser da obra como um todo. Fica clara a inabilidade de manter aquela encenação e extrair um choque final a partir dela, o que poderia ser facilmente resolvido de várias formas, como a câmera que mantém filmando estaticamente quando seu operador já não está mais, algo comum no found footage quando quem maneja o objeto morre. Assim, os Caines não mais trapaceiam tentando nos ludibriar, mas simplesmente jogam tudo para o alto, destroem a razão de aspecto e qualidade da imagem que remetia aos anos 1970, e adentram na psicologia de um personagem que mal conhecemos como uma forma aleatória de finalizar aquele produto, revelando uma incapacidade total de transformar a premissa formal em uma obra completa. É um daqueles casos raros que os cinco minutos finais inabilitam tudo que veio antes dele. Se o filme era o seu rigor formal, quando esse é quebrado, não por autoconsciência, nem por ironia, mas por uma aleatoriedade, é como se a obra já não existisse mais.

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