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|Crítica| 'A Flor do Buriti' (2024) - Dir. João Salaviza e Renée Nader Messora

|Crítica| 'A Flor do Buriti' (2024) - Dir. João Salaviza e Renée Nader Messora

Crítica por Raissa Ferreira.

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'A Flor do Buriti' / Embaúba Filmes

 

Título Original: A Flor do Buriti (Brasil)
Ano: 2024
Diretores: João Salaviza e Renée Nader Messora
Elenco: Ilda Pratpo Krahô, Francisco Hyjnõ Krahô, Solange Tehtikwyj e Raene Kôtô Krahô.
Duração: 125 min.
Nota: 3,0/5,0

 

Atravessando o tempo para contar a história de resistência dos Krahô, João Salaviza e Renée Nader Messora elaboram seu filme como reconstrução de memória e material de denúncia

Nas primeiras cenas, duas crianças enxergam um boi como um inimigo entrando em suas terras, com uma fotografia que monta essa encenação quase como um conto místico. Leva algum tempo até que a narrativa de A Flor do Buriti retorne a esse debate para que compreenda-se que o verdadeiro vilão é, e sempre foi, os cup?, os homens brancos da civilização, e o gado se torna a representação da ação desse outro em seu território. Algo simples à lógica política atual, em que vimos nos últimos anos diversos povos indígenas lutando para serem ouvidos e para terem suas terras demarcadas, mas que o roteiro bastante livre do longa coloca sem pressa por meio das lembranças históricas, crenças e reivindicações dos Krahô. É importante pensar que essa obra possui dois públicos distintos - bem como dois grupos de roteiristas -, os cup?, maioria comum ao cinema e que são estrangeiros à perspectiva das pessoas aqui retratadas e os próprios protagonistas que contam suas histórias, portanto, não é estabelecido um simples diálogo que busca abrir os olhos e ensinar uma cultura, mas uma narrativa que se estabelece no texto e na equipe com pessoas que falam de si mesmas, de suas lembranças, do legado de seus antepassados e da luta que vivem diariamente. Fugindo de um didatismo e se apegando a um referencial mais fluido como o autorismo de Apichatpong Weerasethakul, os personagens de A Flor do Buriti encenam acontecimentos e viagens de alma atravessando os anos, ao mesmo tempo em que a linguagem documental entrelaça uma realidade mais crua do presente e a importância das lutas de hoje, mais burocráticas. 

O elenco muitas vezes equilibra um protagonismo coletivo em que, na verdade, importa mais o fluxo de acontecimentos e o histórico dos Krahô do que a individualidade. Assim, cada personalidade se constrói em conjunto aos outros, Jotàt preocupa a mãe com suas saídas do corpo e noites mal dormidas, e, ao mesmo tempo, o tio serve como guia espiritual que ajuda a menina e tranquiliza a mãe sobre essas experiências - são elas que visualmente levam o espectador a conhecer as dores e perdas dos antepassados de Jotàt - e a tudo isso se costura o nascimento de uma nova criança, filho de Crowrã que carrega o nome de uma figura importante do passado, ao lado de uma luta política que visa a ida da mãe e do tio a Brasília para protestar e se unir a outras mulheres indígenas em suas reivindicações. São diversos pontos em que cada pessoa carrega sua responsabilidade e importância e a presença dos próprios Krahô em cada etapa do filme se torna fundamental para garantir a autenticidade, como contadores de suas histórias. Renée Nader Messora, mais do que seu papel na direção, também assina a bonita fotografia do filme, que exalta as paisagens ao redor de cada personagem, dá vida aos céus e cada ponto de luz na noite, bem como remove a profundidade da escuridão quando os Krahô estão em perigo. As escolhas dela e de João Salaviza em como filmar o massacre, por exemplo, são sempre no sentido de remontar memórias com efeito de as documentar, nunca explorando a violência e o sangue derramado como apelo, constroem com a narração e as imagens chapadas e isoladas o que é preciso para ilustrar suas denúncias, mas sempre buscam mais a força de seus personagens, do que a dor.

A fluidez narrativa permite que a natureza respire entre cada acontecimento, como se a cidade nem existisse em muitas cenas, por vezes um celular lembra a modernidade ou um papel atesta a ditadura, são elementos bastante explicativos que o longa opta por inserir no oposto de sua naturalidade, assim como alguns diálogos em casas fora do território indígena que soam calculados para dizer algo específico, mas, no geral, A Flor do Buriti permite que os Krahô usem a tela de forma mais livre e não apenas mostrem a importância de suas lutas e da preservação de suas terras e cultura para os cup? que assistem nas imponentes salas de festivais internacionais, mas também conversem entre eles mesmos e outros povos indígenas sobre as ameaças que sofrem e crescem conforme o capitalismo avança e os governos mudam. A visão estrangeira dos diretores, um inclusive ironicamente português, confere algum respeito e humildade quando se colocam como realizadores de algo que não os pertence, e entregam assim a voz e o texto (em um roteiro colaborativo) ao que é relevante aos protagonistas que pretendem retratar. É perceptível quando esses personagens naturalmente comandam as pautas e quando são apenas dispositivos utilizados nas cenas, mas o primeiro parece predominar o todo da obra.


 

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