|Crítica| 'As 4 Filhas de Olfa' (2024) - Dir. Kaouther Ben Hania
Crítica por Raissa Ferreira.
'As 4 Filhas de Olfa' / Synapse Distribution
|
Abrindo seu mecanismo cinematográfico para o espectador, Kaouther Ben Hania permite, por meio das encenações, entrar no íntimo de uma história complexa
A contratação de atrizes e atores para compor o filme é exposta desde os primeiros minutos de As 4 Filhas de Olfa não apenas como uma escolha narrativa, mas como quem divide com o espectador a intimidade de seu trabalho. Kaouther Ben Hania não escolhe simplesmente fazer um longa e exibir seu resultado final, mas expor seu processo por dentro para, por meio dele, construir uma narrativa que seja capaz de compreender as pessoas ali envolvidas, as desafiar e questionar, desbravando uma história complexa que envolve traumas geracionais, política, religião e gênero. As intervenções de conhecer as atrizes, montar caracterizações e até mesmo roteirizar as cenas são abertas ao espectador como parte do próprio longa, esses momentos que transitam entre a realidade e a ficção são colocados não de uma forma protocolar, mas usados para entrar gradualmente na história dolorosa dessas mulheres. Como um lento processo de se conhecer alguém e aos poucos descobrir suas bagagens e traumas, a proximidade de Kaouther com Olfa e suas duas filhas já é declarada desde o começo, mas é preciso adentrar esse território da confiança delas com cuidado e, dessa forma, o longa estabelece uma narrativa bastante linear, iniciando com as primeiras lembranças de Olfa para chegar apenas no final, no ponto mais crucial. É nessa construção que passa por tantas fases da vida dessas mulheres que, entre cenas montadas, se dão momentos muito genuínos que revelam como Eya, Tayssir e sua mãe se sentem e enxergam seus momentos vividos. Em outras palavras, a encenação permite a elas uma espécie de diálogo, tanto em família, como com o mundo. Kaouther usa seu filme para que Olfa e suas filhas possam contar sua história por elas mesmas, entrando com sua equipe, elenco e espectadores na partilha dessa intimidade, sem pegar emprestada suas dores para exibição de forma banal.
Em algumas cenas nos primeiros momentos, o choro das meninas se torna um pouco desconfortável, como se fossemos intrusos naqueles desabafos. Porém, esse processo parece ter sido criado justamente para que esse não seja o sentimento, sua forma não apenas convida à empatia, como também mergulha naquele universo em uma espécie de acordo entre público e personagens. Em muitos momentos, os planos bastante próximos quase sempre removem os espaços ao redor, são os rostos daquelas meninas e mulheres que mais importam, estabelecendo um vínculo entre quem faz parte do filme e quem o assiste. As atrizes, ali como pretextos de encenação de momentos mais difíceis ou para substituir aquelas que não estão mais presentes, se tornam também peças daquele núcleo. Gradualmente, conforme tudo vai sendo contado cronologicamente, as irmãs fictícias se aproximam e há cenas mais na frente em que é possível enxergar um entrosamento bastante real entre todas elas, além de que a representação da mãe começa a questionar a própria figura que retrata. Após algum tempo de filmagem, a família se mistura de forma que todas se desafiam, e, assim, a ficção se torna um caminho para que todos possam refletir os acontecimentos - mãe, filhas, atrizes, equipe e público. Olfa é uma mulher tunisiana com costumes muito específicos, mas que sempre os afrontou, se vestiu como homem quando precisou defender a família, estabeleceu limites com o marido e se separou quando decidiu, mas não consegue aceitar em suas filhas pensamentos diferentes, esperando a submissão. Esse exercício fílmico a permite dividir seus pensamentos e costumes, como foram formados em toda sua vida e seus traumas com a própria criação, mas também observar suas filhas de outras formas, a convidando a compreender quem elas realmente são e como se sentiram com tudo que se passa.
São portanto nas frestas entre a ficção que a realidade surge de forma mais potente. Quando a mãe observa as filhas em cenas montadas e as ouve dizer o que nunca parou para escutar, assiste a momentos em que não esteve presente, ou quando as meninas conseguem relembrar passagens de suas infâncias e remontar sentimentos, tudo se torna uma forma de contar não apenas ao mundo - que claramente é uma motivação ao menos de Eya - mas entre elas, dentro dessa família tão conturbada, suas cicatrizes e questões. É curioso como As 4 Filhas de Olfa leva seu tempo para dividir tudo, e por muito tempo é possível tirar a conclusão de que as duas filhas mais velhas estão mortas e tudo aquilo é um exercício de explicar o que levou a essa tragédia. De certa forma, isso talvez seja verdade, já que tudo é colocado em uma linha do tempo alinhada com a realidade e que leva em consideração somente suas narradoras, sendo portanto carregada por seus sentimentos e pontos de vista particulares. Para as irmãs e a mãe, Rahma e Ghofrane possivelmente tenham deixado de existir em algum aspecto, ao se radicalizarem tanto e deixarem a casa, mas tudo que elas têm a dizer no processo revela questões muito mais profundas sobre ser mulher de muitas formas - ser mãe com traumas geracionais, criar mulheres com costumes conservadores, ser mulher em meio ao surgimento do Estado Islâmico, etc. Em um dia é proibido usar o véu e no outro as meninas são manipuladas a usarem o hijab, a liberdade nunca é realmente uma opção para Olfa e suas filhas, seus corpos e mentes são sempre controlados por alguém, estado, homens próximos, ou grupos radicais.
Por ser uma história tão delicada e tão complexa, vejo na forma que Kaouther escolhe fazer seu filme, uma manobra para dialogar com essas mulheres, sem julgamentos, mas permitindo que questionamentos importantes sejam feitos, sempre aproximando sua câmera para extrair seus momentos de reflexões internas. A encenação ajuda não somente a compreender, mas também a criar intimidade com tudo aquilo, estabelecer uma confiança em Olfa, Eya e Tayssir de que aquele é um lugar seguro para dividirem suas vidas e dizer ao mundo como todas essas questões que não são particulares, mas problemas coletivos da sociedade, atravessaram suas existências.