|Crítica| 'Terra de Deus' (2023) - Dir. Hlynur Pálmason
Crítica por Victor Russo.
'Terra de Deus' / Filmicca
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Hlynur Pálmason transforma a missão religiosa de seu protagonista em um comentário sobre a imagem cinematográfica e sua representação e afirmação de realidade
Logo após o Padre Lucas (Elliott Crosset Rove) receber a missão de ir a uma pequena aldeia da Islândia, construir uma igreja e catequizar os moradores da região, um texto nos conta que toda a história do filme foi construída a partir de seis fotos tiradas por um padre e encontradas posteriormente, sendo essas as primeiras capturas fotográficas do local mais a oeste do continente europeu. Poucos segundos depois, veremos o título do longa ser mostrado primeiro em dinamarquês, língua do padre, e, logo em seguida, em islandês, idioma do país que ele iniciará sua viagem missionária. Religião, imagem e barreira linguística/cultural se tornarão, então, os três pilares dessa jornada, mas nunca estarão realmente dissociados.
A missão catequizadora de Lucas com o objetivo de levar a religião católica para todos os cantos do mundo pode ser vista como muitas vezes já retratadas no cinema, de Ingmar Bergman a Robert Bresson, passando por Paul Schrader e Martin Scorsese. A ânsia inicial por doutrinar o outro que se transforma em uma jornada de autodescoberta e questionamentos aos próprios valores cristãos ao se confrontar com o desconhecido e com todas as provações que o mundo impõe. Entretanto, diferente da costumeira narrativa de enfrentamento dos “próprios demônios” (o que acontece aqui também), o personagem de Rove tem aqui não só de construir essa espécie de templo para os que “devem” (sob a ótica do personagem) ser catequizados, mas de registrar essas pessoas e lugares. Por mais que se trate de um acontecimento do século XIX, essa relação entre imagem e realidade não poderia ser mais atual.
Ao recorrer às primeiras imagens sobre aquele lugar e povo, Pálmason está falando também sobre uma nova forma de registro, que viria a substituir a pintura e seria capaz de mostrar a realidade com maior fidelidade, algo semelhante ao que aconteceria pouco mais de um século depois, quando o cinema encontraria uma forma de unir imagens a ponto de criar uma sensação de movimento e, assim, criar uma nova possibilidade de mostrar a realidade como ela é. Tal “vocação” do cinema para a realidade segue em pauta até os dias de hoje, mas a percepção que temos hoje em dia é bem mais ampla. Até a mera ideia de uma câmera que apenas registra é compreendida como a visão específica de seu diretor para aquela realidade, um manipulador da imagem que escolhe o que mostrar e como mostrar. Entretanto, isso não muda essa percepção da imagem como uma prova de realidade. Foi assim durante o holocausto, onde o cinema não pode estar, restando apenas fotografias e representações ficcionais de um dos eventos mais torpes que a sociedade já produziu, é assim na era das redes sociais, em que as narrativas são sempre construídas a partir de imagens, sendo essas quase sempre manipuladas de alguma forma, mas, mesmo assim, usadas como prova de realidade. Assim, Lucas, como um suposto mensageiro da verdade, necessita da imagem para comprovar a realidade. Mais do que isso, se antes eu falava sobre a sua jornada por levar a religião para todos os cantos do mundo, isso se expande também para esse poder missionário da imagem, que atravessa continentes com seu poder e sua construção de verdade particular.
Entretanto, é interessante perceber aqui também a limitação da imagem fotográfica e como Pálmason vai se usar da imagem cinematográfica para tentar preencher um pouco mais daquela suposta realidade representada em tela. Perceba que a escolha óbvia por uma razão de aspecto 4:3 com as bordas arredondadas, para remeter às fotografias da época, não é suficiente para expressar a imensidão das gigantescas e vazias paisagens islandesas. Assim, o cineasta é obrigado a mover essa câmera lateralmente ou aproximar-se de seus personagens a fim de captar alguma humanidade daquela terra fria e com pouca emoção. Então, nesse filme que parece quase uma ode à fotografia, fica claro que essa arte não basta mais, é necessário o audiovisual cinematográfico para preencher essa ilusão de realidade, em sua representação que é, na verdade, controlada.
Dessa forma, se o filme islandês olha para um homem passando por provações quase divinas de uma natureza pura, jornada que o faz repensar seus conceitos e perpassar às barreiras sociais e culturais, Pálmason nunca o faz sob uma perspectiva dogmática, até quando contrasta o personagem com os animais mortos pelo caminho, ele o faz sob uma noção de inevitabilidade. Assim, “Terra de Deus” vai encontrar a sua emoção no registro e na percepção de uma realidade representada, a única aqui capaz de quebrar todas as barreiras impostas pelo homem, pelo tempo e pelo sobrenatural.