|Crítica| 'Resistência' (2023) - Dir. Gareth Edwards
Crítica por Victor Russo.
'Resistência' / 20th Century Studios
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O olhar de Gareth Edwards para aquele mundo específico é constantemente sobreposto pelo teor propagandístico da Disney e a sua ode à Inteligência Artificial
O grande chamariz no pôster do filme, “do diretor de Rogue One”, deixa claro qual público principal a Disney deseja atrair: os fãs de Star Wars. Todo o material de divulgação foca em vendê-lo como esse sci-fi futurista de ação com droides e mundos gigantescos. Entretanto, quando o pôster não coloca sequer o nome de Gareth Edwards, reduzindo-o a apenas quem dirigiu um spin-off de uma franquia que dura mais de 40 anos, fica claro também que o cineasta não deve ter tanta liberdade assim na produção. Não que ele suma perante o filme de grande orçamento, pelo contrário, o diretor é talentoso o suficiente para inserir suas marcas dentro de uma lógica de estúdio, da cena de abertura na praia (o que lembra não só “Rogue One”, como também o seu “Godzilla”), até toda a construção visual do longa e o seu ritmo de urgência. Edwards parece amar aquele mundo que desenhou, dá atenção a cada detalhe, não se rende ao acinzentado CGI “sombrio e realista” que domina Hollywood atualmente e vem assassinando a imagem cinematográfica. Tudo aqui é feito às claras, com cores, vida e uma câmera que filma grandes planos abertos e passeia por aquele espaço a fim de criar um mundo vivo. É bem verdade que não há nada de muito original nesse mundo, não só suas referências são escancaradas como toda a dinâmica parece um daqueles filmes que Neil Blomkamp tentou engatar no cinema sci-fi da última década. Mas, ainda assim, é um mundo vivo, palco para uma nova mitologia que vai se formando.
Entretanto, toda essa preocupação estética fica refém dos temas que permeiam a obra. Inicialmente, Edwards parece fazer um mea culpa da Guerra do Vietnã, em como o exército americano trata aquela região e as aldeias desse novo continente, claramente se referindo não só à realidade histórica, mas, principalmente, em como obras sobre o conflito retrataram esse massacre no Vietnã, sendo “Apocalypse Now” a referência mais evidente. Contudo não fica restrito apenas a isso, como as IA são apresentadas, a partir de um atentado à la 11 de Setembro, após serem uma criação da própria humanidade e dos Estados Unidos, ou essa visão imperialista de invadir territórios com justificativas frágeis, levam o longa para uma abertura interessante, sugerindo por meio daqueles cenários de destruição e mutação um combate estadunidense contra inimigos que eles mesmos criaram.
Só que tudo isso é rapidamente abandonado quando o filme desacelera e mergulha em seu verdadeiro protagonista, interpretado por John David Washington, segundo essa necessidade constante do cinema hollywoodiano de individualizar a narrativa em um herói que tem sua história pessoal ligada à do mundo. É bem verdade que ainda há um tratamento passivo desse personagem, apenas testemunhando os horrores, enquanto tenta sobreviver. Mas aos poucos ele deixa de ser apenas esse olhar do público para se transformar no protagonista de sempre, com o passado de sempre e a missão de sempre. O interessante mundo, então, vai sendo apenas um cenário meio descolado para a narrativa desse personagem meio genérico.
Mais do que isso, essa carga mais melodramática, talvez a grande força de “Rogue One”, vai se esvaziando não por conta do protagonista ou por uma inabilidade natural de Edwards, mas por ser apenas um recurso manipulativo para o verdadeiro interesse de todo o longa: a aceitação da inteligência artificial na sociedade como algo inevitável. Claro que essa humanização da IA e vilanização do ser humano não é novidade. Tal recurso nem fica restrito apenas à tecnologia que ganha sentimentos, mas também é muito recorrente em filmes de animais gigantes, alienígenas e monstros. Porém, não há uma pureza aqui nessa relação, aquela analogia com as minorias que sofrem preconceito no mundo (o que está presente aqui, sobretudo ao situar essas máquinas na Ásia, mas isso eu comento mais para frente). Ao se usar ainda do recurso da criança capaz de salvar o mundo, mas também constantemente posta como artifício de choro, Edwards não atinge o mesmo efeito de um Spielberg no passado, apesar do objetivo ser exatamente o mesmo. Mais de 20 anos se passaram, hoje a inteligência artificial não é mais um vilão de filme de ficção científica apenas, e, sim, uma realidade fora de controle, um dispositivo do capitalismo para a quebra de mais uma barreira de acumulação. Mais do que isso, vivemos uma greve de roteiristas e atores em Hollywood em que um dos tópicos cruciais é a tentativa pelos estúdios de substituir roteiristas, figurantes, extras, dubladores, atores etc por IA a fim de baratear os custos. A AI é maior rival do cinema como obra de arte no momento e no futuro.
Entender o contexto atual é fundamental não só para perceber o quão descolado da realidade “Resistência” parece, mas, principalmente, entender o porquê da feitura da obra (ou pelo menos, investimento por parte do estúdio mais rico do mundo). A Disney e seu CEO, Bob Iger, fazem o maior lobby a favor da IA no cinema, a ponto de terem ilegalmente escaneado rostos de figurantes e obrigado os mesmos a assinarem contratos permitindo que essas faces fossem usadas até post mortem. Então, quando Edwards sai da grandiosidade de seus planos abertos e vai para a intimidade dos closes e planos conjuntos envolvendo a criança, o que ele está fazendo é nada mais nada menos do que usar do bê-a-bá do cinema para manipular pela identificação o público e tornar o discurso de exaltação da inteligência artificial algo aceitável e natural. O discurso político-propagandístico em forma de linguagem cinematográfica que influencia sem se anunciar como lobby.
Algo semelhante vai ocorrer com essa suposta preocupação com a cultura asiática, em alta atualmente em Hollywood, após ser esquecida ou vilanizada por décadas. O que pode parecer uma reparação histórica é, na verdade, apenas o capitalismo mexendo os seus pauzinhos novamente. É o entendimento por esses grandes estúdios da possibilidade de retorno em países como China, Japão e Coreia do Sul (parceira econômica, cultural e militar dos Estados Unidos). Todavia, essa tentativa de representatividade só evidencia o quanto de desconhecimento e desleixo o cinema hollywoodiano tem ao representar essas culturas que ele inferioriza. A desculpa de uma “Nova Ásia” não poderia ser mais baixa, é a forma encontrada por Edwards e pela Disney de colocar chinês, japonês, iraniano, indiano, vietnamita, entre outros, no mesmo lugar a fim simplesmente de vender o longa para todos esses países. Mas, reparem, no final, eles viram apenas dispositivos para o verdadeiro herói crescer, reforçando o discurso de que os Estados Unidos até são vilões muitas vezes, só que há muitas pessoas boas também e são elas as mais capazes de salvar o mundo.
Assim, no fim, “Resistência” não consegue resistir à pressão de seu grande estúdio e a paixão de Edwards pelo seu mundo se esvai em meio a uma visão puramente propagandística da maior empresa do cinema.