|Crítica| 'Angela' (2023) - Dir. Hugo Prata
Crítica por Victor Russo.
'Angela' / Downtown Filmes
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A montagem confusa de “Angela” faz o filme ficar entre o videoclipe, a minissérie encurtada para virar filme e a cinebiografia protocolar
"Angela”, segundo longa-metragem de Hugo Prata, ambos cinebiografias (“Elis” foi seu filme de estreia), já começa em uma festa, com a protagonista (Isis Valverde) chegando e se divertindo, a fim de mostrar, ainda que superficialmente, o seu status de socialite frequentadora de festas famosas da elite paulistana e carioca. Ao mesmo tempo, sente-se uma falta de informações que nunca retornam realmente. A personagem tem um problema na justiça, teve a guarda de seus três filhos tirada por seu ex-marido e diz não querer estar em evidência para não virar mais um escândalo. Ao mesmo tempo, rapidamente, entre um encontro e outro, abandona o seu namorado da vez para se envolver com o homem casado que vai assassiná-la, no filme chamado apenas por seu nome real, Raul (Gabriel Braga Nunes), mas popularmente conhecido como Doca Street, ainda mais famoso por ter tido uma prisão apenas simbólica ao alegar legítima defesa da honra.
O fato de conhecermos pouco do passado de Ângela Diniz nem chega a ser um problema, mesmo que no processo o filme crie uma sensação de que estamos sendo jogados no meio de uma história que revelará o que veio antes, o que nunca acontece. A ideia de focar quase que exclusivamente no relacionamento que terminou no assassinato responsável por tornar esse caso extremamente conhecido é interessante, rejeitando o cansativo e quase sempre pobre modelinho de “cinebiografia Wikipédia” (no qual “Elis” se enquadra bem mais). E é aqui que o longa começa a se transformar em um caso, infelizmente, ainda mais curioso. Ele não é apenas mais uma cinebiografia como tantas outras sem qualquer inspiração e que se aceita em um padrão pré-estabelecido, tanto em recorte histórico quanto em escolhas estéticas. Ao mesmo tempo, apesar da escolha do tempo transcorrido ser diferente, “Angela” carrega o mesmo ar protocolar das dezenas de filmes do gênero realizados todos os anos. Mas não é como se Prata fosse um simples diretor operário fazendo um filme encomendado para um grande estúdio, a impressão que fica é que ele nem tem muito interesse em dirigir a obra.
Há uma certa crise de identidade presente em todas as escolhas artísticas. A começar pelas atuações que moldam o tom confuso, sem qualquer fluidez e de intenção duvidosa entre a sátira, o drama e a tragédia. Uns atores parecem caricaturas dos anos 70 ou 80, enquanto Valverde e Angela Carvalho se colocam em uma sobriedade contemporânea. O mesmo vai se encontrar na unidade estilística, que simplesmente não existe. Em alguns poucos momentos vemos algum tipo de construção narrativa, como quando Angela tenta convencer Lili (Angela Carvalho) a voltar a ser sua empregada, em meio a uma mar de linguagens divergentes, das cenas rápidas de sexo às transições que lembram videoclipes, enchendo a tela de closes dramáticos de Valverde e planos aleatórios do mar, sempre com uma música de fundo que mais parece estar lá porque Prata curte aquele som, do que por conversar de alguma forma com o momento ou com o todo.
Só que é justamente essa falta de unidade estilística, de uma decupagem coerente, de uma visão maior que molde o longa que torna “Angela” ainda mais confuso. Não confuso no sentido de entender os acontecimentos, isso quase sempre é bastante óbvio. A dificuldade de entendimento se dá no sentido narrativo, de não haver uma linha que ligue o todo. E é aí que chegamos à montagem, a grande responsável por tudo que há de mais inexplicável no longa. O papel da crítica nunca é tentar entender os bastidores ou o que o filme poderia ter sido, mas, nesse caso, é difícil não questionar se esse longa não foi totalmente picotado ao ser montado. Há uma clara impressão de minissérie que foi transformada em longa-metragem de menos de duas horas, sem que houvesse um planejamento prévio para isso. Dessa forma, a narrativa se transforma em uma série de esquetes de momentos da vida de Angela nesse relacionamento, sem que haja um envolvimento dos personagens para além de picos de ciúme de Raul ou qualquer tipo de evolução narrativa, o que aqui seria uma necessidade, já que, teoricamente, a proposta do filme seria o crescimento de um ciúme até o assassinato ser cometido. Só que essa progressão não existe, assim como também nada tem dos motivadores, o que Angela teria feito para Raul alegar legítima defesa da honra se resume a uma ida em um forró, a personagem nem sequer chega a traí-lo durante a projeção. Nesse sentido, acaba por encontrar aquela cinebiografia padrão, que pula de momentos em momentos sem conectá-los apenas como um protocolo de eventos que “precisam” estar presentes.
O filme é tão protocolar e Prata parece tão desinteressado em tudo aquilo que até o olhar do longa para Angela é conflitante e quase inexistente. Em alguns poucos momentos a julga, como quando trata mal Lili, em outros busca empatia, sobretudo ao mostrá-la apanhando, mas nunca a ponto de criar uma visão sobre a personagem. Ao mesmo tempo, não é um simples distanciamento a fim de simplesmente olhar de longe aquele evento cruel. É quase como simplesmente somos jogados em eventos de Angela fazendo alguma coisa, sem qualquer intenção da câmera. Seria até plausível defender uma possível isenção da direção, se não fosse o texto final.
Muitas vezes a presença de textos ao final de filmes baseados em fatos reais é pela inabilidade do roteiro em inserir aqueles eventos na narrativa, em outros são apenas desnecessários e em alguns poucos são acréscimos interessantes. No caso de “Angela”, não é nada disso, ao mesmo tempo que é tudo o que o filme queria ser e nem passa perto de fazer. É aí que percebemos o interesse de Prata pelo crime, seus desdobramentos e o impacto desse feminicídio em uma sociedade misógina. O problema é que nada disso está realmente nos 100 minutos de rodagem.