|Crítica| 'Barbie' (2023) - Dir. Greta Gerwig
Crítica por Victor Russo.
'Barbie' / Warner Bros. Pictures
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“Barbie” segue à risca a fórmula do blockbuster contemporâneo e se torna justamente aquilo que pretende criticar: um produto utilizado pela Mattel para lucrar
Poucas vezes um filme teve um marketing tão certeiro a ponto de se tornar unanimidade antes mesmo de ganhar as telas de cinema. Do anúncio sobre fazer um filme da Barbie, passando pelas primeiras imagens de Margot Robbie e Ryan Gosling de patins no calçadão, pela divulgação do trailer e constantes matérias, como a da Greta Gerwig listando uma série de referências que usou para o filme ou uma ainda mais estratégica, em que Gerwig e Noah Baumbach falam sobre um executivo da Mattel ir até o set de filmagem impedir que eles fizessem críticas à corporação (seria muita ingenuidade acreditar nessa história, mas desenvolverei isso mais adiante), “Barbie” já era um sucesso de bilheteria e crítica há meses. É como se o filme não começasse quando o projetor fosse ligado, sendo esse apenas o momento final de uma obra que já tinha começado há um ano e todo mundo tinha amado.
Pode parecer estranho começar uma crítica citando o marketing, já que o importante mesmo é sempre o que se apresenta em tela. Entretanto, aqui o antes e o agora se tornam indissociáveis. Mais do que isso, os memes construídos pela divulgação respingam o tempo todo na projeção. Ao mesmo tempo em que vemos o filme criar uma autoimportância, colocar-se no lugar de obra mais relevante de uma geração pelos temas trabalhados e pela suposta proposta subversiva, na prática, ele carrega em si todos os elementos comuns ao blockbuster contemporâneo, quase como um checklist que deve ser seguido para agradar o público e os executivos de estúdio. O longa pode até se revestir de uma estética diferente, a autoconsciência que constrói aquele mundo cor de rosa teoricamente perfeito, mas toda a narrativa a partir das piadas de referências pouco tem de diferente dos filmes da Marvel, por exemplo.
É bem verdade que a estética do mundo da Barbie apresentado inicialmente funciona bem como esse choque de fantasia, o que o filme abraça de forma interessante, sobretudo nos efeitos visuais mais cartunescos, mas que também será importante para a construção dessa ideia de um mundo que parece perfeito, vivendo sem a consciência dos problemas maiores que estão presentes no mundo lá fora. Apesar do discurso aqui já ser bastante claro, como tudo no longa, é um dos momentos que funciona justamente por dialogar com a construção de mundinhos particulares da internet a partir de uma feitura majoritariamente visual. Todavia, Greta sugere que irá desconstruir esse mundo, aquela visão idealizada cheia de problemas que ela claramente está satirizando. Só que essa desconstrução nunca vem realmente. Pelo contrário, o filme não só praticamente fecha de forma conformada, como, mantém-se no mesmo tom mesmo quando abandona aquele lugar idealizado.
Assim, após a sequência de abertura, somos levados pela jornada habitual do blockbuster contemporâneo, utilizando as interessantes referências não como progressão narrativa, mas como pausas constantes para piadinhas que não só já estavam no material oficial de divulgação, como, em sua maioria, já eram memes na internet, memes esses que não surgiram aleatoriamente, e, sim, a partir das constantes divulgações da Warner sobre o filme (mais uma vez marketing e obra se fundem em um só). Claro, tudo isso envolto na recorrente autoconsciência e metalinguagem que permitem não só fabricar mais piadas-memes, mas dar um ar de descolado a partir do momento em que o filme se reconhece como filme e se dispõe a tirar sarro até mesmo da Mattel, a dona da boneca mais famosa do mundo e uma das corporações que financiaram o filme (o que está longe de ser novidade também, até o horrível “Space Jam: Um Novo Legado” já fez isso há poucos anos ao tirar sarro da Warner).
Porém, diferente de outras obras, em que essa autoconsciência serve como um escudo, aquela suposição de que como o filme não se leva a sério, ele pode fazer tudo, já que está o fazendo com intenção (o que “Barbie” faz em grande medida também), Greta leva aqui essa autoconsciência para o cerne temático da sua obra. Diferente de seus longas anteriores, em que o forte teor feminista surge a partir do desenvolvimento da sua protagonista, aqui Greta e Baumbach não só tornam esse discurso o mais claro possível (a mania do blockbuster contemporâneo de que se o tema não for cuspido na cara do espectador por meio de diálogos que o expõe como uma palestra, o público será incapaz de entender sobre o que é aquilo), como tentam ampliar o discurso feminista para como a indústria tem se usado da pauta para fins lucrativos, mais uma vez colocando a Mattel como essa piada sem graça dominada por homens que nada sabem ou vivem daquilo, mas são os verdadeiros beneficiados por isso.
O problema é que tal tentativa, por mais que tematicamente interessante (os blockbusters e o capitalismo conscientemente se usam da pauta feminista para fins lucrativos e raramente filmes apontam o dedo para essa consequência), não só perde força pela abordagem, como cria um efeito reverso com as escolhas que surgem a partir da saída da matrix (mais uma referência que não só faz questão de ser clara, como sente a necessidade de explicar a piada). Já comentei sobre o longa pouco diferenciar o tom do mundo da Barbie desse mundo real, retratando esses executivos da Mattel como idiotas e tendo Will Ferrell como o CEO bobão (não dava para imaginar outro no papel). Até aí tudo bem, o filme vai sustentar por meio dos Ken essa ideia dos homens idiotas que tomam o controle só por serem homens e o fato de serem burros não os tornam menos perigosos. A questão é que, ao final, Greta e Baumbach atiram no próprio pé ao dar um fechamento lúdico a esses homens, como se no fundo eles fossem pessoas boas e devessem ser perdoados por todo o mal que causaram.
Tal escolha não só soa como o filme desvilanizando os engravatados, como é uma espécie de aceitação do capitalismo, além de mais uma tendência do blockbuster contemporâneo que ganhou força com os filmes de heróis (perceba que os vilões da Marvel quase nunca são apenas vilões malvados, sempre precisam ter uma certa bondade escondida, o clichê dos “tons de cinza”). Todo o lugar em que o longa se coloca, de ser desconstruído e progressista, é revertido assim como todo o discurso anti-Mattel. Lembra a matéria da Greta e do Baumbach defendendo sua visão criativa contra um executivo da Mattel? Então, alguém acha que se o filme realmente incomodasse a empresa de alguma forma, tais piadas estariam presentes? É claro que não, todo o humor teoricamente ácido contra a corporação é na verdade bem inofensivo. A vilã, a representação aqui do capitalismo, no final, só parece mesmo uma empresa descolada que se permite brincar consigo mesma. Tudo que “Barbie” tem de supostamente inovador e subversivo não é nada além de controlado, dosado para que o capitalismo continue funcionando da mesma forma e a Mattel ganhe ainda mais dinheiro, não só com a venda de bonecas, mas com o filme em questão. Sabe aquelas cinebiografias de astros da música, em que o cinebiografado é produtor do filme e permite um ou outro “deslize” da sua carreira em meio a um mar de exaltação? A relação “Barbie”-Mattel não foge muito disso. Como a maioria das sátiras sociais recentes (filmes de Adam Mckay, Ruben Östlund, entre outros) ou os filmes de heróis com temáticas mais feministas (“Viúva Negra”, Capitã Marvel” etc), o longa da Greta até pode se dar muita importância (o que será reforçado por aqueles que preferem um discurso fácil), mas não deixa de ser só mais um produto da indústria com todos os elementos dos filmes de algoritmos que em nada resolvem o problema, só o mascaram, nesse caso, em um mundo cor de rosa.
Além disso, ainda tem a premissa do filme, a crise existencial da protagonista e o medo da morte, que retornará em um longo discurso final. Porém, repetir que, nesse caso, mais uma vez o longa segue exatamente o roteiro do blockbuster contemporâneo (a necessidade de soar profundo, enquanto expõe a sua filosofia barata de forma óbvia e autoimportante) não é necessário. E isso talvez seja até o menos problemático de “Barbie”.