|Crítica| 'Canção ao Longe' (2023) - Dir. Clarissa Campolina
Crítica por Raissa Ferreira.
'Canção ao Longe' / Vitrine Filmes
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Numa busca por pertencimento, o filme de Clarissa Campolina usa os silêncios e as construções para uma observação que permanece fria e distante
A sequência de abertura de “Canção ao Longe” usa os principais elementos que serão trabalhados em todo o longa: planos alongados, uma trilha sonora que preza pelos sons dos ambientes, silêncios e uma câmera que observa tudo de forma distante, mas olha principalmente para as construções que cercam as pessoas. A relação estabelecida entre a casa e as questões internas de Jimena (Mônica Maria) extrapola para um olhar geral para tudo que é concreto, tijolos, paredes, prédios, casas, janelas e espaços urbanos e como os corpos se encaixam nessas estruturas. O não pertencimento que Jimena sente pela cor da pele diferente de sua família se torna um desconforto com a própria casa em que mora, buscando então esse encontro em outros espaços físicos mais do que internamente. Dessa forma, o filme parece nunca se aprofundar muito nos personagens, tornando a relação do espectador com a obra um tanto distante, como assistir por uma janela a uma história de outros.
Quase tudo que se passa na cabeça da mulher vem por meio das cartas trocadas com o pai ausente, em narrações que acompanham essa contemplação dos planos. Assim, o caminho natural dessa jornada é exatamente o que a narrativa segue, para Jimena se encontrar precisa encontrar sua própria casa e nesse processo romper certos laços com os pais, principalmente o da morada. A questão racial e as questões sociais, tão importantes nesse desconforto quase físico que ela sente, começam por um caminho muito mais simbólico, que trata os sentimentos de Jimena com uma sutileza que casa bem com o distanciamento que a obra propõe, porém, aos poucos o filme sente a necessidade de dizer mais explicitamente tudo que a incomoda. Talvez a maior dificuldade aqui seja como as imagens conseguem construir tanto, por vezes até soando como um horror por essa falta de identificação, mas a narrativa não é capaz de acompanhar com o mesmo êxito. As relações entre corpos e espaços são bem desenhadas sem precisar dizer muito, os próprios sons da cidade, a fotografia que diversas vezes apequena os personagens enquanto engrandece tudo que os cerca e a metáfora da casa em ruínas já são suficientes para adentrar nesse dilema tão contemporâneo de passar de fase na vida adulta encontrando seu espaço físico na cidade.
Mas fica faltando um fôlego e um aprofundamento na narrativa que acompanhe esses esforços. Assim, o texto acaba se repetindo muitas vezes na exposição dos mesmos questionamentos de Jimena sobre suas diferenças externas e internas com a mãe e a avó sem nunca entrar mais nas histórias ou emoções dessas pessoas. O pai é o mais trabalhado nesse caso, é seu relacionamento com a jovem adulta que mais importa nessa construção imaginária de sua própria “casa”, com narrações distantes que pontuam essa presença na vida da filha. Mas, parece que ficam buracos nas estruturas, já que a mãe é parte fundamental de toda essa angústia, o elemento que difere de Jimena e que também é causa para esse não pertencimento que ela sente nos espaços. Existe muito que não passa do superficial nesses pontos, com diálogos meio travados, tornando difícil uma conexão maior.
A duração curta, pouco mais de uma hora, é uma escolha acertada nesse sentido, tornando mais palatável o afastamento dos personagens. Ainda que todos tenham funções bem estabelecidas como representações de paternidade, vínculos afetivos, pertencimento de raça e classe, todas as pessoas parecem importar menos do que o concreto para a diretora. A própria Jimena se divide entre várias atividades que nunca entendemos completamente e a última carta que recebe do pai parece dizer mais que tantas palavras que ouvimos dele ao longo do filme, uma simples foto de seu quarto, da janela com vista para a cidade.
Então, ainda que exista uma frieza nessa distância estabelecida imageticamente e reforçada por uma narrativa rasa, o longa brilha quando deixa o que é visual e sonoro falar por si, construindo sentido nos espaços e nos silêncios, mais do que tentando se explicar em palavras e levantando paredes que impedem a conexão que esses diálogos parecem querer criar.