|Crítica| 'Ervas Secas' (2024) - Dir. Nuri Bilge Ceylan
Crítica por Victor Russo.
'Ervas Secas' / Imovision
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As mais de 3 horas de planos longos e diálogos filosóficos nunca escondem a real importância de Nuri Bilge Ceylan: os personagens
Vencedor da Palma de Ouro em 2014 por "Winter Sleep", Ceylan, um dos grandes nomes (talvez o maior) do cinema turco, não tenta reinventar o seu próprio cinema em "About Dry Grasses". O vencedor do Prêmio de Melhor Atriz (Merve Dizdar) traz de volta elementos comuns a filmografia de Ceylan, como o inverno que joga as pessoas para dentro das casas sem realmente aproximá-las, os muitos diálogos em planos longos com personagens filosofando sobre a vida e suas visões de mundo, além de comentários indiretos contrastando a "velha" e a "nova" Turquia. Entretanto, como o cineasta organiza tais elementos em torno dos seus ricos personagens faz desse filme o melhor da sua carreira e um dos grandes filmes dessa ótima edição do Festival de Cannes.
Mais uma vez, o cineasta vai partir de um "mcguffin" (ou seja, a premissa nos leva a crer que o filme é sobre algo a ser resolvido, mas, na verdade, o longa é sobre muitas outras coisas). No caso, o "mcguffin" surge com a aluna acusando um professor de abuso, enquanto o filme dá a entender que aquilo é apenas ela tentando se vingar após ter um pedido rejeitado por esse mesmo professor, chamado Samet (Deniz Celiloglu), o protagonista da obra. Entretanto, tal conflito inicial serve mais para nos revelar algumas facetas de Samet do que com o intuito de ser o foco dessas mais de 3h de projeção.
Samet se revolta, passa a tratar mal a aluna, enquanto pede apoio do seu amigo, também professor (Musab Ekici). Ao mesmo tempo, o caso faz o protagonista desejar ainda mais sair dali, ir para a capital, onde teria mais oportunidades de fazer algo relevante. Porém, o discurso por mudança do personagem sempre para em um comodismo. É essa dicotomia entre o falar e o não fazer que vai mover a trama, principalmente após a aparição de Nuray (Dizdar), que provoca Samet e escancar a sua hipocrisia, ao mesmo tempo que ela mesmo age de forma semelhante. Os personagens representam esse anseio por mudança de uma nova Turquia, mas suas ações pouco servem para alterar o conservadorismo da velha. É como se quisessem a mudança e conflitassem com esse novo ao mesmo tempo (como Samet não consegue se entender com a jovem aluna, a representação do futuro).
Todavia, se "About Dry Grasses" parece filosofar e provocar os seus personagens abrindo seus defeitos, na prática, Ceylan pouco julga esses personagens. Pelo contrário, faz deles pessoas falhas e belas ao mesmo tempo. Enquanto o inverno se apresenta lá fora, a tempestade está dentro do trio principal, sobretudo Samet e Nuray. Só que essa raiva vai se dissipando ao passo que nos aproximamos deles, até o clímax na belíssima sequência do jantar. É quando a incapacidade do diálogo que domina a narrativa vai gradualmente perdendo espaço para um tesão crescente. É quando Ceylan, pela primeira vez, abandona o seu olhar mais distante e observativo e se usa de mais cortes, aproximando a câmera do rosto dos personagens, criando assim a tensão da sequência, que começa com conflito e vai se desenvolvendo para um fogo ardente entre os dois. Nem a escolha do cineasta de revelar o fazer cinematográfico antes do sexo nos afasta daquele momento. É justamente nesse pré-amor que o cineasta encontra seu melhor humor, desarmando os personagens de suas facetas sociais e os entregando a uma inocência juvenil, um nervosismo antes de transar quando ambos sabem o que vai rolar.
Tal momento gera conflito (outra sequência engraçadíssima, por sinal), mas também liberta os personagens. Surge a vontade de fazer e não mais apenas ficar restrito ao discurso. Assim, "About Dry Grasses" se desenvolve por meio dessas dicotomias, dos opostos que vão desde o ambiente (frio fora, quente dentro), até principalmente os personagens, a alma de uma obra que só parece distante pela câmera quase nunca próxima, a hipocrisia presente em cada um, os planos longuíssimos e muitas vezes estáticos e os longos diálogos. As filosofadas são ironizadas, o discurso que Ceylan concorda em algum sentido e, principalmente, a humanidade de seres imperfeitos cheios de ideais e hipocrisias. Poucas vezes 3h30 foram tão belas e instigantes. É o toque do Turco que chega ao seu melhor e mais humano filme.